Por David Roberto R. Soares da Silva
A Receita Federal vem causando muita insegurança com relação à incidência de imposto de renda na fonte (IRRF) sobre remessas ao exterior a título de doações e heranças havidas por não residentes. De maneira equivocada, o fisco vem entendendo que a isenção acabou com a edição do novo Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018), aprovado pelo Decreto nº 9580/2018.
Mas, não é bem assim.
Até o final de 2018, a tributação de herança e doações de bens brasileiros por estrangeiros não era um problema, pois o art. 690, inciso III do Regulamento do Imposto de Renda de 1999 (RIR/1999), então vigente, dispunha expressamente que as remessas de valores havidos por herança ou doação por residente ou domiciliado no exterior não se sujeitavam ao IRRF. Dizia o citado art. 690 do RIR/1999:
Art. 690. Não se sujeitam à retenção de que trata o art. 682 as seguintes remessas destinadas ao exterior:
(…)
III – os valores dos bens havidos, por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior”.
Ao contrário de muitos outros dispositivos do RIR/1999, o art. 690 não trazia qualquer referência à sua base legal, ou seja, qual a lei que previa a não incidência do IRRF sobre doações e heranças havidas por não residentes. Isso porque, como se sabe, o RIR é um decreto presidencial que apenas consolida as leis tributárias relativas ao imposto de renda. Por determinação constitucional, um decreto não pode criar ou aumentar imposto, assim como não pode reduzir ou eliminar tributação. É certo que há exceções na Constituição, mas não é o caso do imposto de renda.
Pois bem, a controvérsia com relação ao IRRF sobre heranças e doações ao exterior iniciou com a edição do novo RIR/2018, aprovado pelo Decreto nº 9580, que foi publicado em 23 de novembro daquele ano. Ao contrário de seu predecessor RIR/1999, o RIR/2018 não trouxe qualquer dispositivo que confirmasse a continuidade da não incidência do IRRF sobre remessas de doações e heranças ao exterior.
A partir daí, a Receita Federal passou a se manifestar no sentido de que, a partir da vigência do RIR/2018, todas as remessas a título de herança ou doação ao exterior passaram a se sujeitar ao IRRF à alíquota de 15%, ou de 25%, se o beneficiário residir em paraíso fiscal listado pela própria Receita Federal. É o caso das Soluções de Consulta nº 309/2018 e 104/2019.
Vale transcrever a ementa da Solução de Consulta nº 309/2018:
“Os valores remetidos a título de doação a residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica, sujeitam-se à incidência do IRRF, à alíquota de 15% (quinze por cento), ou de 25% (vinte e cinco por cento), na hipótese de o beneficiário ser residente ou domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), art. 43; Regulamento do Imposto de Renda, anexo ao Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018 (RIR/2018), art. 744, caput e §1º.”
De início, já vale notar que, curiosamente, a Solução de Consulta cita, como base legal, o Código Tributário Nacional (CTN) e o próprio RIR/2018. Nada mais.
Embora, à primeira vista, a posição da administração tributária pareça fazer sentido, ela ignora completamente o fato de que a não incidência do IRRF sobre heranças e doações ao exterior não se baseia nem no CTN, nem no RIR, seja ele de 1999 ou de 2018.
Vejamos.
O primeiro argumento contra a incidência do IRRF é constitucional: a Constituição lista expressamente os tributos que cada ente tributante (União, Estados, Distrito Federal, e Municípios) pode criar com base em lei aprovada por seus respectivos Poderes Legislativos. Enquanto Art. 153, inciso III da Constituição, atribui competência à União para a incidência do imposto de renda, o art. 155, inciso I atribui aos Estados o poder de criar imposto sobre transmissões causa mortis (heranças) e doações. Pode-se argumentar que, ao deixar as heranças e doações no âmbito do poder tributante dos Estados e do Distrito Federal, a Constituição teria excluído esses eventos da incidência do imposto de renda, inclusive do IRRF.
Ainda que não se admita esse argumento constitucional, tem-se que o art. 6º, inciso XVI, da Lei nº 7.713/1988, concede expressamente a isenção do imposto de renda sobre o valor dos bens recebidos por pessoa física a título de doação ou herança.
Vale ressaltar que o art. 6º não faz distinção entre beneficiários residentes e não residentes no País e, assim, a não sujeição ao imposto de renda (incluindo o IRRF) deve se aplicar a ambos. Esta conclusão é respaldada pelo Código Tributário Nacional, cujo art. 111 exige interpretação literal da legislação tributária que trata sobre isenção.
Por último, mas não menos importante, dois outros artigos de lei sustentam a não tributação pelo IRRF das doações e heranças ao exterior, ambos em vigor há mais de 70 anos.
O primeiro deles é o art. 10 do Decreto-Lei nº 5.844 / 1943, que dispõe:
“Art. 10° Constituem rendimento bruto, em cada cédula, os ganhos derivados do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, e demais proventos previstos neste decreto-lei.
(…) § 2° Não entrarão no cômputo do rendimento bruto:
(…) b) o valor dos bens adquiridos por doação ou herança.”
Aqui, alguns poderiam interpretar que a não incidência de IR sobre o valor dos bens adquiridos por doação ou herança somente se aplicaria àqueles auferidos por residentes no Brasil.
Ora, além da aplicação do disposto no art. 111 do CTN, acima citado, este dispositivo deve ser aplicado juntamente com o art. 97, § 3º, do mesmo Decreto-lei nº 5.844/1943, que trata especificamente dos rendimentos auferidos por não residentes e que dispõe:
“Art. 97. Sofrerão o desconto do imposto à razão de 15% os rendimentos percebidos:
a) pelas pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no estrangeiro;
§ 3º A taxa de que trata este artigo incidirá sobre os rendimentos brutos, salvo se provierem de capitais imobiliárias, hipótese em que será permitido deduzir, mediante comprovação, as despesas previstas no art. 16.”
Ao combinar as duas disposições do Decreto-lei nº 5.844/1943, pode-se concluir que o IRRF sobre pagamentos e remessas ao exterior se aplica sobre o rendimento bruto (art. 97, § 3), mas que nesse rendimento bruto não se computa “o valor dos bens adquiridos por doação ou herança”, conforme expressamente determina o art. 10, § 2º, item “b” do mesmo decreto lei.
Observe-se que, mesmo tendo sido editados há mais de 70 anos, não há evidências de que esses artigos tenham sido revogados por qualquer outro ato legal superveniente. Veja-se, ainda, que existem mais de 100 referências ao Decreto-lei nº 5.844/1943 no RIR/2018 (seis delas ao seu art. 97 e uma ao art. 10). Da mesma forma, há mais de 100 referências à Lei nº 7713/1988 no mesmo RIR/2018, 25 delas ao art. 6º da lei. Além disso, qualquer um que acesse a seção de legislação do planalto pode verificar que esses dispositivos constam como plenamente em vigor.
Assim sendo, tem-se que a não inclusão expressa no RIR/2018 da isenção de IRRF sobre valores remetidos ao exterior a título de heranças ou doações em nada interfere na continuidade do benefício, dado que tanto o art. 6º da Lei nº 7.713/1988, como os arts. 10, § 2º e 97, § 3º do Decreto-lei nº 5.844/1943, ambos vigentes, dão suporte legal ao benefício
No entanto, em razão da posição oficial da Receita Federal sobre a incidência do imposto, é muito provável que os bancos comerciais que operem com câmbio exijam o pagamento do imposto ou uma ordem judicial liberando o remetente da retenção. Assim, as pessoas físicas e jurídicas não residentes que receberem doações e heranças do Brasil devem consultar um especialista para determinar a viabilidade de entrar com uma ação judicial para o não pagamento do imposto.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.