Por David Roberto R. Soares da Silva
Nos dias atuais em que as relações humanas são efêmeras, fluídas e informais, muito se fala sobre o risco de uma relação amorosa ser considerada união estável e, com elas, advirem consequências patrimoniais não desejadas. Dentre as consequências indesejadas possíveis, vale citar a partilha de patrimônio em caso de separação (dissolução), alimentos, e direitos hereditários (herança).
Muitas vezes, desejo de ver a relação devidamente reconhecida como uma união estável – seja ela hereto ou homoafetiva – leva as pessoas a formalizarem a relação por meio de um contrato particular ou escritura pública lavrada em cartório. A formalização da união é sempre recomendada, devendo as partes estarem cientes de suas consequências.
O problema maior da união estável está quando ela não é formalizada em contrato ou escritura, até porque as partes – ou ao menos uma delas – não via a relação com tal.
O que vem a ser união estável?
Diz o art. 1.723 do Código Civil que a união estável reconhecida como entidade familiar é aquela “configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família”.
Os três primeiros requisitos são de certa forma objetivos, a saber: convivência pública é aquela de conhecimento geral por aqueles do convívio social das partes. Uma relação secreta, sem conhecimento da família e dos amigos não é uma convivência pública, e sim privada. A convivência contínua é aquela que não é esporádica. Já convivência duradoura se revela pelo tempo de relacionamento, embora a lei não estabeleça prazo mínimo.
A relação de um casal que mora junto com o conhecimento dos amigos e família, de forma contínua por um longo período pode, em tese, configurar união estável, com as consequências patrimoniais dela decorrentes, se houver objetivo de constituir família. Por outro lado, um casal na mesma situação, mas sem esse objetivo, não passaria de um casal de namorados. Assim, no término na relação ou no falecimento de uma das partes, não haveria bens a partilhar ou direitos hereditários.
Mas, afinal, o que vem a ser o objetivo de constituir família?
Em primeiro lugar, vale dizer que a intensidade do afeto é irrelevante para essa caracterização. Uma paixão avassaladora num único verão certamente não configura união estável, ao passo que a relação menos intensa por vários anos, pode vir a configurá-la.
Em decisão de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que fazer planos para constituir uma família no futuro não é suficiente para configurar uma união estável, ainda que as partes morem juntas. Vejamos:
“O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado” –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, estar constituída. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício).” (REsp 1.454.643-RJ).
O trecho transcrito revela alguns indícios do que vem a ser objetivo de constituir família: “efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros”. No namoro, embora seja comum as pessoas se apoiarem mutuamente, cada um tem a sua vida particular, seus interesses próprios e privados, seus amigos de convívio pessoal, sem dependência financeira (material) um do outro. Ainda que morem juntos e possam compartilhar as despesas da casa, há um certo elemento de egoísmo, um limite da vida particular da qual o outro não participa.
Neste ponto, é interessante um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que entendeu que a manutenção de vidas próprias e independentes do casal de namorados foi o fator decisivo para não aceitar a união estável pretendida por uma das partes. Vejamos:
“(…) Faltou um requisito essencial para caracterizá-lo como união estável: inexistiu o objetivo de constituir família. Com efeito, durante os longos anos de namoro mantido entre os litigantes, eles sempre mantiveram vidas próprias e independentes. Realizaram várias viagens juntos, comemoraram datas festivas e familiares, participavam de festas sociais e entre amigos, a autora realizava compras para a residência do réu – pagas por ele –, às vezes ela levava o carro dele para lavar, e consta que ela gozou licença-prêmio para auxiliar o namorado num momento de doença. Contudo, ainda que o relacionamento amoroso tenha ocorrido nesses moldes, nunca tiveram objetivo de constituir família” (Embargos Infringentes 70008361990, de 2004).
Este mesmo elemento de manutenção da independência foi destacado em outra decisão do STJ, que distinguiu a união estável do chamado namoro qualificado:
“Na relação de namoro qualificado os namorados não assumem a condição de conviventes porque assim não desejam, são livres e desimpedidos, mas não tencionam naquele momento ou com aquela pessoa formar uma entidade familiar. Nem por isso vão querer se manter refugiados, já que buscam um no outro a companhia alheia para festas e viagens, acabam até conhecendo um a família do outro, posando para fotografias em festas, pernoitando um na casa do outro com frequência, ou seja, mantêm verdadeira convivência amorosa, porém, sem objetivo de constituir família” (REsp 1.263.015-RN, de 2012).
Num caso inusitado, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu não caracterizada a união estável pleiteada pela namorada pelo fato de ela não possuir as chaves da casa do namorado:
“Nesse vértice, causa surpresa o fato de Marta não possuir as chaves da residência do falecido, enquanto a ex-mulher dele tinha livre acesso ao imóvel. Aliás, após a morte de Ari, Marta não pode ali ingressar; além do que, não comprovou que tivesse algum bem dela junto aos pertences do falecido. É dizer, não havia essa mínima confiança e disponibilidade de privacidade em relação ao afirmado companheiro, o que também sugere incompatibilidade com o que se espera de uma união estável.” (Apelação 0014396.19.2013)
Em outro julgado, de 2019, o STJ definiu que o namoro de dois meses com coabitação de duas semanas não era suficiente para evidenciar a estabilidade de um relacionamento como união estável. Embora no caso, o curto prazo da relação tenha sido determinante para não configuração da união estável, o ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso, entendeu como essencial o requisito da estabilidade, ou seja, há necessidade de certa convivência mínima do casal para permitir que dividam as alegrias e tristezas e compartilhem dificuldades e projetos de vida. (REsp 1761887-MS).
O que se percebe em comum das decisões judiciais acima, é que “objetivo de constituir família” está atrelado a uma certa renúncia da privacidade e vida individual e, ao mesmo tempo, o desejo – externado ao círculo social – de compartilhar alegrias, tristezas, dificuldades, apoio moral e financeiro. Quanto mais egoísta for a vida privada de cada pessoa na relação, menos presente estará o objetivo de constituir família.
A família exige um certo nível de renúncia individual em prol da vida em comum. Quanto mais configurada essa renúncia, mais próximo se estará da entidade familiar protegida pela lei.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
TUDO SOBRE UNIÃO ESTÁVEL E SUAS CONSEQUÊNCIAS PATRIMONIAIS – COM JURISPRUDÊNCIA – VOCÊ ENCONTRA NO NOSSO BEST-SELLER “PLANEJAMENTO PATRIMONIAL: Família, Sucessão e Impostos”. Saiba mais: