Já tivemos a oportunidade de ler o artigo “Trust no Brasil?”[1], publicado pela Editora B18, no qual foram abordadas as características desse instituto típico dos países que adotam o common law como sistema jurídico. O artigo ainda tratda da ausência de um paradigma similar em nosso ordenamento jurídico, inclusive havendo um projeto de lei buscando dirimir algumas dessas dificuldades que contribuintes brasileiros enfrentam quando são beneficiários de tais estruturas.
Conforme exposto no artigo mencionado, o trust corresponde a uma estrutura fiduciária na qual a propriedade de certos bens é transferida em confiança por alguém, instituidor (settlor), para um terceiro (trustee), de forma irrevogável ou não, que os administra de forma discricionária ou não, em favor de um rol de beneficiários conforme as regras estabelecidas pelo settlor.
De fato, a despeito de ser um instituo centenário e amplamente utilizado como uma estrutura sucessória no exterior, a ausência de dispositivos em nossa legislação sobre o tema, e a complexidade que as estruturas podem ter, dificultam a aplicação de nossa legislação, principalmente sobre os aspectos tributários.
Por ocasião do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT[2], também conhecido como anistia ou “repatriação”, as autoridades fiscais haviam se manifestado no sentido de que os ativos detidos sob trusts deveriam ser declarados por seus beneficiários, podendo, também, ser feito pelo settlor, ainda que não constasse do quadro de beneficiários, para aproveitar os benefícios da regularização, inclusive a anistia criminal.
É nesse momento, a nosso ver, que começam as confusões de interpretação e tratamento que acabam por distorcer o tratamento tributário quando da disponibilização de recursos aos beneficiários no futuro.
Apesar de não termos o instituto do trust em nosso ordenamento jurídico, sempre fomos de opinião de que essa figura deveria ser interpretada, primordialmente, sob o prisma do direito de propriedade vigente em nosso Direito.
Melhor explicando, caso o instituidor transfira de forma definitiva (irrevogável) determinados ativos a um terceiro para que o administre em confiança, esses ativos não são mais do instituidor e devem ser baixados de sua lista de bens na declaração de IR. Como nessa transferência o instituidor não recebe nenhum título em retorno, teríamos uma cessão não onerosa a uma estrutura terceira que, apesar de se defender que não tenha personalidade jurídica própria, não se confunde com o patrimônio de seu instituidor. Aliás, com a transferência para uma estrutura irrevogável, o patrimônio transferido deixa de pertencer ao instituidor.
Contudo, na estrutura fiduciária, os ativos transferidos não passam necessária e automaticamente à propriedade dos beneficiários. Esses, no mais das vezes, não possuem sequer direitos de requerer informações e/ou exigir distribuições daquele terceiro, pois sempre valerão as diretrizes do instituidor, ainda mais nos casos de administrações discricionárias, nas quais o trustee tem o poder de administrar os bens da forma que ache mais conveniente dentro do espectro de diretrizes instituídas. É lógico que a constituição do trust pode ser realizada de diversas formas e variantes, trazendo maior complexidade à análise sobre os aspectos de propriedade, mas esse ponto é o que nos parece deveria ser o a nossa bússola para “tropicalizar” seus efeitos.
Ora, se os ativos não são mais do instituidor e tampouco o são dos beneficiários até que seja feita uma distribuição, esses beneficiários, ao receberem recursos ou bens do trust, estariam a auferir receitas sem nenhuma contrapartida, quer anterior ou atual por não serem rendimentos do capital ou do trabalho, nem decorrentes da alienação de bens ou direitos previamente adquiridos. Isso faz com que, no nosso entender, uma distribuição de recursos ou bens de um trust a um beneficiário, faz com que tal distribuição se assemelhe a uma doação ou instrumento sucessório, ambos sujeitos ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação – ITCMD, de competência estadual, que tributa essas transferências gratuitas em até 8%, dependendo de cada estado,
Aqui, não vamos abordar os aspectos referentes à possibilidade de discussão judicial sobre a cobrança de ITCMD de ativos provenientes do exterior, mas simplesmente afirmar que as distribuições realizadas pelo trustee aos beneficiários não nos parecem fatos que justificariam a incidência do imposto de renda (IR).
Foi justamente nesse sentido que um contribuinte impetrou mandado de segurança[3] perante a Justiça Federal em São Paulo, para garantir o afastamento da pretensa incidência do IR sobre as distribuições do trust da qual era beneficiário, ainda mais porque a Receita Federal já havia se posicionado[4] sobre o seu entendimento de que referida situação deveria ser tributada pelo IR.
Nesse caso, o contribuinte expôs que declarou e tributou os ativos do trust por ocasião do RERCT e recebeu nos anos seguintes (2016 a 2019) distribuições dessa estrutura, as quais declarou à Receita Federal como doação, inclusive recolhendo o ITCMD e aplicando a isenção de IR prevista na legislação, requerendo, em liminar o reconhecimento da natureza de doação desses valores recebidos e a suspenção da exigibilidade de qualquer cobrança de IR sobre tais recebimentos, até porque se tributassem os recebimentos do trust poderiam vir a tributar valores anteriormente já tributados na regularização.
Após o indeferimento da liminar, o juiz prolatou sua decisão no sentido de que o instituto do trust por não ser tipicamente previsto no Brasil, não seria possível afirmar que os pagamentos efetuados ao beneficiário por aquela estrutura se caracterizam como doação. Assim, a isenção do IR aplicável às doações deveria ser interpretada de forma restritiva, nos termos do art. 111 do nosso Código Tributário Nacional, não sendo admissível afastar a incidência do IR. Todavia, a decisão garantiu a não tributação em duplicidade dos recursos declarados e tributados anteriormente no RERCT.
Apesar de possuirmos entendimento diverso à incidência do IR, bem como crer que alguns aspectos fáticos desse caso tenham concorrido para o entendimento do magistrado, não podemos afastar esse precedente contra a caracterização da natureza de doação aos pagamentos realizados por trusts aos seus beneficiários, ainda que seja uma decisão de 1ª instancia, passível de recurso.
Portanto, vale o alerta para os beneficiários de trust para avaliarem suas estruturas junto aos seus assessores para avaliar eventuais riscos fiscais existentes ou potenciais.
Osmar Marsilli Junior é advogado tributarista, especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Marafon, Soares, Nagai & Marsilli Advogados.
[1] Estevam, Priscila Lucenti – Seu Patrimônio, ano II – Vol. 7 – Fevereiro de 2021, pag. 4
[2] Instituído pela Lei nº 13.254/2016
[3] Processo nº 5017217-81.2020.4.03.6100
[4] Solução de Consulta COSIT nº 41/2020