O universo corporativo está em constante movimento, seja por conta de inovações tecnológicas que a cada dia invadem o mercado e estão sempre e mais aceleradamente aumentando o mercado competitivo, seja pelos movimentos de fluxos e necessidade de capitais, para financiamento e expansão de operações. E deste disputado mercado, um ingrediente poderoso são operações que visam combinação de sinergias, muitas delas identificadas por meio de operações conhecidas por fusões e aquisições (M&A na sigla popularizada pela língua inglesa).
Pensamos não haver dúvida acerca do impacto da aceleração econômica e da mundialização para o mundo corporativo, impactando inclusive em como as empresas se relacionam no mercado, tanto local, quanto regional quanto global. Mas quando aplicamos estes pontos às empresas tida por familiares, os desafios e necessidades de maior olhar multidisciplinar se agigantam – especialmente em operações de M&A, dado que os negócios costumam refletir a personalidade de seus fundadores.
A empresa familiar é a união de esforços e recursos para um dado fim, com a presença de uma determinada família (ou um conjunto de) no empreendimento, sendo, em muitas economias globais, um elemento fundamental para a geração de empregos, desenvolvimento econômico e crescimento das indústrias. Não existe, contudo, uma definição legal para a mesma, sendo objeto de distintos estudos. Podemos definir uma empresa familiar como aquela na qual um ou mais membros de uma família exercem o controle administrativo da gestão, seja por instrumentos diretos de controle da maioria do capital social da empresa, seja por instrumentos indiretos jurídicos, que também permitam à família a manutenção da propriedade e gestão da empresa aos seus fundadores e sucessores. É possível identificar na mesma um determinado fundador ou fundadores, membro de uma família, tendo outros membros da família como participantes, seja da propriedade, seja da gestão e administração. Neste caso, pode ser possível identificar valores institucionais e princípios estreitamente ligados à família.
Sérgio Gonçalves identifica nas empresas familiares três importantes pontos de convergência, que simultaneamente possuem os seguintes elementos: a) a família concentra a propriedade da totalidade ou maioria das ações ou quotas da empresa, e, portanto, o seu controle econômico; b) a família é detentora da gestão, define os objetivos, as diretrizes e políticas da empresa; c) a família administra o empreendimento, através de um ou mais de seus membros, no nível executivo mais alto[1]. Em suma, é um tipo de negócio cujo nascimento se deve a um ou mais empreendedores (fundador(es)), cuja maioria do capital social encontram-se nas mãos de uma única (ou poucas) família(s), assim como o controle administrativo da gestão. Nesta empresa familiar, é possível perceber uma influência recíproca dos sistemas empresarial e familiar, seja na hipótese de a gestão estar atribuída à primeira geração (fundadores), seja nos casos da mesma estar sob os cuidados de seus sucessores familiares.
E qual a questão de fundo que pode exigir eventual cuidado em questões de operações societárias no tocante a empresas familiares? Bem, a relação mista, entre família e negócio pode gerar atritos. Verificando eventuais problemas que podem surgir nas empresas familiares, Chua, Christman e Steier (2003, p. 331) já destacaram que “para uma empresa se sustentar como familiar no mercado competitivo do século XXI, deve haver uma sinergia e um relacionamento estreito entre a família e a empresa. A empresa precisa ter um desempenho de forma que crie valor para a família e a família precisa criar valor para a empresa. A atuação se torna impossível sem o envolvimento familiar.”[2].
A questão dos conflitos de interesse existentes entre família e empresa pode representar uma grande fraqueza ou fragilidade da estrutura corporativa, o que leva o empresário consciente a planejar sua sucessão. Isto porque quando chega o momento da transição (transferência do bastão, no jargão popular, ou mesmo em operações de M&A), os diversos centros de poder instaurados nos membros da família começam a disputar seus espaços, visando assumir a administração da empresa. Todos os herdeiros aptos a se candidatar (e mesmo aqueles não aptos) começam a buscar suporte e ligações, o que facilita ainda mais o início de brigas e disputas familiares. Com esta situação, a empresa pode chegar ao ponto de necessitar de capital em momento delicado – em meio a disputas de herdeiros, de ter seu fluxo financeiro comprometido, ou de enfrentar redução ou falta de disciplina de seus executivos, acarretando o uso ineficiente de recursos disponíveis.
Seja no caso de empresas cujos sócios possuem centros de patrimônio distintos, seja para o caso de empresas familiares, ou empresas que possuem na administração pessoas de uma mesma família ou grupo familiar há anos, a busca pela estabilidade no relacionamento das partes, das decisões e do centro de poder deve ser um ponto comum a todos que pensam no bem e na continuidade do empreendimento conjunto. As decisões devem ser tomadas visando a continuidade do negócio, bem como a consolidação e ampliação do patrimônio recebido pelos sucessores. Estas decisões (individuais ou em conjunto) podem influenciar diretamente o patrimônio, impactando positiva e/ou negativamente e, juntamente com mudanças no cenário nacional e internacional, podem trazer consequências diretas ao negócio e ao patrimônio.
E para isso, os profissionais devem sempre almejar o maior grau possível de isonomia e imparcialidade dentro de todo o processo de estruturação e de implementação do planejamento.
Inicialmente, é importante ter ciência, que em todos os tipos societários é altamente recomendável, visando geração de valor, que sejam implementadas políticas e processos de governança corporativa. Em empresas familiares, a medida certamente é uma aposta na sobrevivência da empresa, pois usualmente surgem de forma natural e orgânica, mas não costumam implementar políticas e práticas de governança corporativa ao longo de seu desenvolvimento que garantam sua sustentabilidade.
Os processos de fusão e aquisição de empresas são motivados por favores endógenos e exógenos. Para José Paschoal Rossetti, existem alguns fatores dominantes, dentre eles: a) verificação de ganhos de market share (participação no mercado); b) maior amplitude geográfica de atuação; c) crescimento, com ampliação de escalas operacionais. Além de razões de crescimento, Rossetti aponta objetivos ligados à ampliação da competitividade, à diversificação (tanto da linha de produtos quanto de negócios), ao aporte de tecnologia e à verticalização (integração da cadeia de negócios)[3]. Já para Barros, a literatura aponta dois motivos para a compra de empresas: a) maximização do valor da empresa, por meio de sinergias, economias de escala e/ou transferências de conhecimento; e b) motivações do corpo diretivo, baseadas no aumento do referido market share, incluindo eventual redução do nível de incerteza e aumento de eficiência com ganhos de escala[4].
Com olhar para as empresas familiares, podemos apontar como motivadores de processos de M&A alguns elementos como: a) a necessidade de incorporar aportes adicionais de capital ao negócio sem recorrer a financiamento bancário, b) o desinteresse das gerações seguintes na condução da empresa ou mesmo na continuidade do negócio ou linha comercial, c) o aparecimento de concorrentes que podem proporcionar sinergias para o crescimento do negócio, d) projetos de crescimento internacional, entre muitos outros. Mas um certamente possui peso que pode corroer o negócio, os conflitos entre acionistas familiares. E este é carregado de elementos que transbordam negociações racionais, penetrando no universo de sentimentos, animosidades e irracionalidade – todos destrutivos da empresa familiar.
Neste ponto entra a importância (e por que não, necessidade) da boa governança corporativa como fator de sucesso nesses processos, que certamente terão reflexos absolutamente positivos na etapa da due diligence (auditoria preliminar e preparatória onde são realizados levantamentos e análises pormenorizadas sobre a empresa alvo, no intuito de avaliar a viabilidade da conclusão do processo de M&A). O debate, discussão e criação de um projeto profissional atrai modelos de gestão estratégica de alto nível para as empresas familiares que implementam controles corporativos.
Com foco e visão dos objetivos do negócio, os gestores da empresa familiar podem criar maior alinhamento e gerar eficiências, sem perda ou desperdício de recursos valiosos, inclusive o escasso tempo que poderia ser perdido com desalinhamento e conflitos. Esta visão auxiliará, também, a compreender motivações dos atuais titulares da empresa com relação a possíveis formas e operações de M&A, dada a percepção envolvendo as crenças e os valores dos fundadores ou herdeiros atuais no comando do negócio e o perfil de potenciais investidores ou compradores que, quando díspares ou muito distintos poderem causar choques indesejáveis e muitas vezes intransponíveis às partes.
O planejamento estratégico se revela fundamental para definir metas ou para aprofundar conhecimento do ambiente empresarial no qual o negócio está inserido, mapeando riscos e oportunidades, seja durante um determinado período, seja para um projeto específico, que pode ser exatamente uma preparação para um processo de M&A. Conforme visto acima na lição de Barros, a preparação para futuras operações societárias pode maximizar o valor da empresa, aumentando economias de escala e/ou o market share. Neste cenário, certamente poderão ocorrer conflitos ao se tentar superar a resistência natural verificada e decorrente da crença de que o(s) fundador(es) da empresa a conhece(m) melhor e sabe(m) qual o caminho do sucesso de longo prazo – o que não é necessariamente uma hipótese impossível, mas certamente não se pode assumir como verdade.
O comprometimento com princípios e estruturas de governança corporativa, com políticas e processos robustos em todos os níveis hierárquicos, uma efetiva meritocracia instituída para funcionários e familiares e uma administração implementada segundo princípios profissionais (quiçá melhor com gestores independentes) certamente fortalece e consolida valores de compromisso e dedicação à empresa.
A necessária evolução do modelo de família empresária para uma empresa familiar estruturada e com processos definidos certamente é um caminho seguro para a perpetuação da atividade e do negócio, com visível criação de valor tanto para a atual gestão e membros da família quanto para as futuras e vindouras gerações.
Luís Rodolfo Cruz e Creuz, é advogado e consultor, doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e sócio de Cruz & Creuz Advogados, em São Paulo/SP.
[1] GONÇALVES, J. Sérgio R.C. As empresas familiares no Brasil. Revista de Administração de Empresas. São Paulo: Escola de Administração de Empresas de São Paulo e Fundação Getúlio Vargas. Vol. 40, n° 1, Jan/Mar/2000, pág 7.
[2] Chua, J., Chrisman, J. & Steier, L. (2003). Extending the Theoretical Horizons of Family Business Research. Entrepreneurship Theory and Practice, Summer, (pp.331-338) apud MACHADO, Hilka Vier. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 2, p. 317-323, mai./ago. 2005, pág. 317
[3] ROSSETTI, José Paschoal. Fusões e aquisições no Brasil: as razões e os impactos. In: BARROS, Betânia Tanure de (Org.). IN Fusões, aquisições & parcerias. São Paulo : Atlas, 2001, págs. 67-87
[4] BARROS Betania Tanure, et alli. Gestão nos processos de fusões e aquisições. IN BARROS, Betania Tanure. IN Fusões e aquisições no Brasil: entendendo as razões dos sucessos e fracassos. São Paulo : Atlas, 2003, págs. 17-49