Counter Strike, Battlefield, Call of Duty. Você provavelmente já jogou ou, ao menos, já ouviu falar desses jogos eletrônicos em algum momento da vida. Ou, no exato momento em que se dedica a essa leitura, a depender da plataforma, está em algum computador cujo sistema operacional é alguma versão do Windows.
Pois bem, a questão em comum atribuída a todas as mídias acima, e tantas outras milhares de opções, é que são todos softwares, desenvolvidos para as mais infinitas necessidades humanas. E como regulador das relações sociais, o direito também incide e protege essas propriedades, que, no Brasil e em várias partes do mundo, são tidas como obras intelectuais, assim como os livros.
Desse modo, ao adquirir qualquer dos programas acima, o usuário torna-se signatário de um contrato de cessão de uso. O autor ou detentor dos direitos do software, mediante transação, cede a licença de sua obra ao usuário, que, em boa parte dos casos, é impossibilitado de alterar qualquer característica do programa. Frisa-se, são licenciados, e não vendidos.
Claro que a exposição acima está demonstrada de uma maneira simples e feita somente para melhor compreensão do quanto decidido recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.659. Basicamente, a questão define um debate já antigo no judiciário: se a comercialização de softwares, para fins de tributação, é objeto de incidência de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, ou do Imposto Sobre Serviços – ISS.
Não é a primeira vez que o STF analisa a questão. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 176.626, a Corte verificou dois tipos de software: os chamados “de prateleira”, adquiríveis pelo consumidor final por meio de aquisição direta, sem que o autor da obra alterasse o código de programação, produzidos em série; e o software sob encomenda, direcionado a atender as necessidades específicas do comprador. O primeiro – “de prateleira”, visto como mercadoria – seria apto a desencadear a incidência de ICMS, enquanto o segundo – sob demanda – seria a execução de um serviço, logo, fato gerador de ISS.
No entanto, com a dinamização das tecnologias e melhor entendimento sobre a matéria, o STF reviu seu posicionamento e deixou o tema bem mais objetivo. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.659, foi instada a Corte a dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 2º da Lei Complementar Federal nº 87/96 – Lei Kandir, ao artigo 5º da Lei nº 6.763/75 e ao artigo 1º I e II do Decreto nº 43.080/2002, sendo estes dois últimos normativos oriundos do Estado de Minas Gerais. Todos eles têm em comum a cobrança de ICMS.
Mas por que interpretação conforme a Constituição? Porque, pela Constituição Federal, um dos fatos geradores do ICMS é a circulação de mercadorias, e se de mercadorias não se trata, no sentido mercantil (de objetos que necessitam passar por atos de comércio com transferência da titularidade), qualquer outra norma que desse outro sentido que não o fornecido pela Lei Maior é inconstitucional.
Voltando ao caso específico, a Corte partiu de duas premissas ao decidir a ação:
- os conflitos de competência tributária envolvendo softwares são tratados pelos artigos 146, I (Cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) e 156, III (Compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II [Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias] definidos em lei complementar), ambos da Constituição Federal. Assim, fez o legislador uso da Lei Complementar nº 116/03 e inseriu no rol de serviços tributáveis pelo ISS o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação (item 1.05 da lista de serviços anexa à LC).
- Software é produto do intelecto humano (como dito linhas acima, uma propriedade intelectual), caracterizando um fazer, no sentido de obrigação, mais precisamente, uma obrigação de fazer, seja em qualquer tipo de software – “de prateleira” ou sob encomenda.
Traduzindo, no item i), a Carta Magna designou o ICMS aos Estados e Distrito Federal, e o ISS aos municípios. E, também em seu texto, definiu que os conflitos de competência porventura existentes entre os entes da Federação seriam resolvidos por Lei Complementar, criada pela União. Desse modo, o ICMS incidiria sobre o fornecimento de mercadoria quando acompanhado da prestação de serviços, com a exceção se esses mesmos serviços estivessem elencados em lei complementar, definidora dos serviços tributáveis por meio do ISS. Portanto, uma vez que o licenciamento e a cessão de direito de uso de software estão inseridos no subitem 1.05 da lista de serviços anexa à LC 116/03, não há dúvida de que haveria a incidência de ISS.
E sobre o item ii), o trabalho realizado pelo autor do software é de cunho intelectual e, mesmo que haja a vendagem em grandes tiragens, não descaracterizaria o esforço humano em sua realização, uma verdadeira obrigação de fazer. Assim como os serviços inerentes ao uso de software, como o help desk. E, ainda que fosse possível falar em incidência de ICMS sobre bens incorpóreos e imateriais (caso da energia elétrica), é condição necessária à incidência desse tributo a circulação do bem, a transferência de propriedade, o que evidentemente não ocorre com o software, que se operacionaliza com contrato de cessão de direitos de uso ou licenças.
Desse modo, conclui-se que não há mais cobrança de ICMS sobre a aquisição de direitos de software, sejam os criados sob demanda, sejam os ditos “de prateleira”. Sua operação é base de cálculo de ISS. Em termos práticos, haverá, ao menos em tese, uma desoneração considerável às empresas do setor.
Pegando como exemplo as alíquotas dos dois impostos em São Paulo, enquanto o ISS está fixado em 2,9% do valor da operação realizada na cidade, o ICMS está em 7,9%, em vigor no estado, uma diferença de mais de 100%.
Ao menos em tese, as jogatinas virtuais, o trabalho e tantos outros serviços relacionados à aquisição de software tendem a ter uma redução em seus preços.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
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