Conhecidas por permitir anonimato e privacidade aos seus detentores, as criptomoedas são utilizadas para pagamentos na Internet e, também, como instrumento de investimento. Em certas situações, há quem advogue a sua utilização como forma de proteção e blindagem patrimonial. Mas, será mesmo?
Em recente decisão, a 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, determinou a pesquisa de criptomoedas (bitcoins) em nome de sócios de empresa devedora de verbas trabalhistas.
No caso, o processo já se encontrava em fase de execução e, para a satisfação de seus créditos, os trabalhadores requereram a pesquisa na plataforma “bitcoin.com” para identificar se os sócios possuíam criptomoedas (moedas virtuais) em seus nomes.
O pedido foi negado em primeira instância, mas, em sede de recurso, o pleito foi atendido pelo TRT, que determinou o prosseguimento da execução por meio de envio de ofício à Receita Federal e à plataforma “bitcoin.com” para averiguar a existência de criptomoedas em nome dos sócios executados.
Segundo o entendimento do TRT, a busca de moedas virtuais é uma pesquisa estritamente patrimonial, não infringindo a esfera dos direitos fundamentais, como nos casos da suspensão da CNH, cancelamento ou suspensão dos cartões de crédito e bloqueio de serviços de telefonia/internet dos executados.
Vale transcrever trecho do acordão:
“Quanto à suspensão da CNH, cancelamento ou suspensão dos cartões de crédito dos executados, bloqueio de serviços de telefonia/internet fixa e móvel dos executados, entendo que essas medidas, além de não serem eficazes para solução do processo, infringem de forma grave a esfera dos direitos fundamentais.
(…) Ainda que o direito perseguido pelo exequente envolva o adimplemento de verbas trabalhistas de nítida natureza alimentar, isso não se mostra argumento para que se rompam as fronteiras de direitos cuja efetividade é essencial até mesmo para garantir as liberdades democráticas e, com isso, até mesmo a eficácia dos direitos sociais.
O mesmo não se dá com acolhimento do pedido para realização de pesquisa junto à Receita Federal e à plataforma “bitcoin.com”, com o intuito de identificar se os sócios possuem Criptomoedas, visto se tratar de uma pesquisa estritamente patrimonial, não sendo empecilho a inexistência de convênio junto ao E. Tribunal nesse sentido”. (TRT-15 0010579-95.2016.5.15.0036)
Nesse mesmo sentido, em outra recente decisão, o Juiz Carlos Alberto Monteiro da Fonseca, da 54ª Vara do Trabalho de São Paulo, aceitou o pedido de bloqueio de criptomoedas em nome de outros executados em processo trabalhista.
No caso, o processo havia se iniciado há mais de 18 anos, e no último mês de junho (2021), o magistrado aceitou o pedido do trabalhador, para buscar possíveis criptomoedas em nome dos executados, tendo em vista que todas as demais tentativas de penhora restaram infrutíferas.
Segundo o entendimento do magistrado, caso a resposta da pesquisa retorne positiva, deverá ser realizado o bloqueio dos criptoativos.
Vale transcrever trecho da decisão:
“(…) Oficiem-se às empresas Xdex, Foxbit, Mercado Bitcoin e Bitcoin Trade, nos endereços indicados pelo reclamante, solicitando que informem acerca da existência de criptomoedas em nome dos executados e, em caso positivo, seja realizado o bloqueio até o limite do valor executado”. (54ª Vara do Trabalho de São Paulo/SP – Proc. 0192700-88.2002.5.02.0054).
O que podemos notar é que a busca pela satisfação de créditos (trabalhistas ou não) por meio de criptoativos vem crescendo no Poder Judiciário dado o aumento da demanda por esses ativos por investidores em geral. A privacidade permitida pelos criptoativos pode ser um atrativo adicional àqueles com dívidas de toda a sorte.
Em maio de 2019, o fisco federal publicou a Instrução Normativa nº 1.888/2019, instituindo a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações com criptoativos à Receita Federal. De acordo com a IN, deverão ser informadas operações de (i) compra e venda; (ii) permuta; (iii) doação; (iv) transferência de criptoativos para a exchange; (v) retirada de criptoativos da exchange; (vi) cessão temporária (aluguel); (vii) dação em pagamento; (viii) emissão; e (ix) outras operações que impliquem em transferência de criptoativos.
A obrigatoriedade de reporte se aplica às (i) exchanges de criptoativos domiciliadas para fins tributários no Brasil; e (ii) pessoas físicas e jurídicas residentes no Brasil, quando: (a) as operações forem realizadas em exchange domiciliada no exterior; ou (b) as operações não forem realizadas em exchange. No caso de pessoa física, a obrigatoriedade de reporte se aplica sempre que o valor mensal das operações, isolado ou conjuntamente, ultrapassar R$ 30.000,00. A Instrução Normativa prevê imposição de multa mensal para o caso de falta de prestação de informação ou sua prestação extemporânea, inexata, incompleta ou incorreta, sem prejuízo de comunicação ao Ministério Público, em caso de indícios de ocorrência de crime de lavagem de dinheiro.
Embora a IN nº 1.888/2019 pareça, à primeira vista, colocar um fim à privacidade e anonimato dos detentores de criptoativos, os seus efeitos no auxílio à identificação e penhora desses ativos para quitação de dívidas podem ser muito limitados.
Com as obrigações criadas pela Receita Federal, não se questiona a possibilidade de investigação e rastreamento dos criptoativos.
A dificuldade está na efetivação de sua penhora, dado que a estrutura de chaves privadas dos criptoativos, geralmente, não permite que terceiros, não possuidores dessas chaves, cumpram ordens judiciais. A chave privada é uma espécie de ‘senha’ que permite ao titular realizar operações e transferir criptoativos. Somente o titular da chave (o devedor, no mais das vezes) é que pode fazê-lo. A exceção ocorre apenas caso o custodiante ou exchange do criptoativo possua a chave privada do cliente e, com isso, execute a ordem judicial.
Assim sendo, embora o Judiciário brasileiro esteja alerta no esforço para identificar devedores titulares de criptoativos, a medida, ao final, tem grandes chances de ser ineficaz. Isso porque, diferente de outros ativos (imóveis, contas bancárias, veículos), para os quais uma ordem judicial pode ser cumprida sem depender o titular do bem (ex., registro de imóveis, banco, DETRAN), essa funcionalidade não é possível para os criptoativos, dado que dependem, necessariamente, da chave de acesso. Sem ela, não há como efetivar uma penhora ou transferir o criptoativo para o credor ou para a custódia do Poder Judiciário.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
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