Por Enio Casella
A efetividade real das execuções judiciais pode ser vista, primordialmente, como a divisa entre a promoção ou não da justiça e entre a segurança ou insegurança dos contratos. É condição sine qua non para um ambiente negocial saudável.
Desde os primórdios, a questão já era objeto de discussão: Rui Barbosa já dizia que a “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada”.
A Constituição Federal de 1988 prevê a efetividade da justiça como direito fundamental, conforme art. 5º, inciso LXXVIII. Importa também mencionar que o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969) contém regramento no mesmo sentido (art. 8º).
A realidade nacional jamais foi favorável ao alcance da real efetividade das execuções. Dados do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por exemplo, apontam que, até 2020, 74,45% dos valores, objeto de tentativa de bloqueio de ativos financeiros, foram malsucedidos naquele tribunal. O anuário “Justiça em Números” do CNJ, para o ano de 2019, apontou uma média nacional de congestionamento de execuções na porcentagem de 85% dos casos[1].
O Poder Judiciário e o Legislador, não obstante, têm se esforçado no desenvolvimento de mecanismos que possam garantir maior efetividade às ações judiciais, especialmente, face à evolução mercadológica e tecnológica vivenciadas recentemente.
O sistema BacenJud e a penhora eletrônica de ativos financeiros
O grande marco para a evolução do sistema de execução brasileiro foi a criação, ainda no ano de 2001, do sistema BacenJud, divulgado por meio do Comunicado nº 8.422/2001.
O legislador, por sua vez, cinco anos mais tarde, fez incluir, no antigo Código de Processo Civil de 1973, o art. 655-A, através da Lei nº 11.382/2006. Esse dispositivo continha previsão de requisição “à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade…”.
O sistema BacenJud foi implantado e utilizado com relativo sucesso na Justiça brasileira, embora, conforme já apontado, trata-se de resultados insuficientes. Por exemplo, os dados da Semana Nacional da Execução Trabalhista[2] mostram a evolução dos valores arrecadados pelo sistema desde 2012, conforme figura a seguir.
A legislação, em ritmo muito mais lento, modernizou-se, redundando no advento do Novo Código de Processo Civil de 2015.
As principais novidades do legislador de 2015 consistiram em:
- Possibilidade de inclusão do nome do executado nos cadastros de maus pagadores (art. 782º, §3º e 4º);
- Possibilidade de protesto da decisão transitada em julgado;
- A adoção da Prescrição Intercorrente (art. 921º, §4º);
- A ampliação das hipóteses de fraude à execução.
Com relação à disciplina da penhora de ativos financeiros, na esteira do antigo art. 655-A do CPC de 1973, sobreveio o art. 854º, que, muito embora tenha trazido disciplina mais extensa a respeito do tema, não conteve grandes inovações.
O surgimento das fintechs e a reação do Poder Judiciário
A evolução legislativa, ainda que necessária, já era insuficiente à época. Com efeito, a segunda década do século XXI foi marcada por intensa evolução tecnológica por parte do setor financeiro.
Os principais marcos evolutivos, surgidos no período, correspondem:
- Às fintechs[3], uma abreviação para financial technology, termo utilizado para se referir a novas empresas que desenvolvem produtos financeiros totalmente digitais, com possibilidade de cadastro e operação sem qualquer contato físico entre cliente e instituição, situação que representa desafio no que diz respeito à prevenção de fraudes e à própria atuação da jurisdição brasileira; e
- Ao fenômeno do open banking[4], que corresponde à regulamentação que possibilita o compartilhamento de informações bancárias dos clientes entre diferentes instituições financeiras, bem como a movimentação de seus ativos financeiros por diferentes plataformas – o exemplo mais conhecido é o PIX.
O fenômeno é absolutamente intenso. Segundo estudo do Finnovation[5], já em 2019, existiam 504 Fintechs funcionando no Brasil, divididas entre os segmentos de câmbio, pagamentos, bancos e contas digitais, investimentos, seguros, crédito, cripto e blockchain, tecnologia para instituições financeiras e gestão financeira – pessoal e empresarial.
Nomes até recentemente desconhecidos, como Nubank, Banco Inter, Melliuz e BTG Pactual Digital despontaram, disputando espaço e clientela com os grandes bancos tradicionais, fazendo crescer a bancarização do País[6] e descentralizando as operações financeiras. Do ponto de vista do Poder Judiciário, claro, o fenômeno fez surgir desafios novos e a necessidade de evolução.
É desse contexto que surgiu o Sisbajud, evolução do sistema eletrônico de penhora judicial de ativos financeiros em 2020. Para além das funcionalidades de envio eletrônico de ordens de bloqueio, o novo sistema, nascido de um Acordo de Cooperação Técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Banco Central (Bacen) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), muito mais robusto, permite[7]:
- Requisição de informações detalhadas sobre extratos em conta-corrente no formato esperado pelo sistema SIMBA do Ministério Público Federal;
- O pedido, por parte dos juízes, de informações dos devedores tais como: cópia dos contratos de abertura de conta-corrente e de conta de investimento, fatura do cartão de crédito, contratos de câmbio, cópias de cheques, além de extratos do PIS e do FGTS;
- A expansão da possibilidade de bloqueio para ativos mobiliários como títulos de renda fixa e ações;
- A reiteração automática de ordens de bloqueio de ativos, denominada pelo CNJ de “Teimosinha”[8].
É natural, diante de um quadro de tamanha evolução, que surgisse dúvida na comunidade jurídica acerca da possibilidade jurídico-tecnológica de bloqueio de ativos financeiros sob gestão das fintechs.
Trata-se do caso, por exemplo, de Execução Trabalhista[9] que tramitou no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 6ª Região (Pernambuco), na qual o Reclamante/Exequente, justamente apontando a necessidade de efetividade e celeridade processuais (seu processo é datado do ano de 2004), requisitou envio de ofício às chamadas fintechs, visando bloqueio de ativos.
O juízo de primeira instância não analisou a questão a fundo, limitando-se a negar a pretensão obreira salientando que, “na indicação de novos meios, deverá a parte justificar adequadamente o seu requerimento, demonstrando um mínimo de utilidade e efetividade para a satisfação da execução”.
Submetida à questão do Agravo de Pretensão, o TRT da 6ª Região, através de sua 4ª Turma, negou provimento ao Recurso[10]. Segundo pontuado no voto condutor, as fintechs nacionais, que têm autorização para funcionamento, já estão totalmente integradas ao sistema Sisbajud,bastando ao Exequente o pedido de ordem de bloqueio ou requisição de informações para que também as fintechs sejam alcançadas.
Com efeito, o Conselho Monetário Nacional (CMN), através das Resoluções nº 4.656 e 4.657, já regulamenta a atuação das fintechs desde o ano de 2018[11]. Em apertado resumo, as operações delas, sujeitas à autorização do Banco Central, estão abrangidas dentro do Sistema de Informações de Créditos (SCR), que divide as fintechs entre a Sociedade de Empréstimo entre Pessoas (SEP) e as Sociedades de Crédito Direto (SCD).
Diferenciando-as[12]:
- As SEP são intermediadoras de modo que podem captar recursos do público (credor), emprestando os recursos ao devedor, cobrando tarifas pela operação, comumente conhecida por peer-to-peer lending. Podem, ainda, as SEP atuar como serviço de análise de crédito e cobrança, bem como com a emissão de moedas eletrônicas.
- As SCD realizam operações de crédito, por meio de plataforma eletrônica, com recursos próprios, além da possibilidade de atuar como serviço de análise de crédito e cobrança, mas também com emissão de moedas eletrônicas e distribuir seguros relativos a operações concedidas por elas.
A inserção das fintechs, no sistema Sisbajud, segundo voto condutor do acórdão citado, deu-se através do art. 3º, IV, do Regulamento do Sistema BacenJud 2.0 (atual Sisbajud)[13]:
“IV – Instituição participante – aquela que é responsável pelo cumprimento da ordem. São instituições participantes: o Banco do Brasil, os bancos comerciais, os bancos comerciais cooperativos, a Caixa Econômica Federal, os bancos múltiplos cooperativos, os bancos múltiplos com carteira comercial, os bancos comerciais estrangeiros – com filiais no País, os bancos de investimentos, os bancos múltiplos sem carteira comercial, as cooperativas de crédito, as distribuidoras de títulos e valores mobiliários, as corretoras de títulos e valores mobiliários e as sociedades de crédito, financiamento e investimento, e outras instituições que forem abrangidas pelo BACEN JUD 2.0, com a expansão do alcance do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS)”.
É de se notar que o dispositivo não cita expressamente o Sistema de Informações de Créditos e as suas subdivisões SEP e SCD, mas, com a expansão do alcance do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional e a adoção generalizada do sistema open banking, passam também essas instituições a estarem sujeitas a bloqueios por meio do sistema. O acórdão em tela ainda cita jurisprudências recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo[14], do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul[15] e do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo)[16], todos no mesmo sentido da inclusão das fintechs no sistema Sisbajud.
Conclusão
O maior desafio da Justiça Brasileira, desde sempre, foi o de promover a verdadeira Justiça. Nessa seara, a efetividade do provimento jurisdicional, de maneira célere, constitui-se em um dos maiores desafios ainda a serem vencidos pelo Poder Judiciário.
A missão é especialmente desafiadora neste século, diante do avanço tecnológico sem precedentes, sobretudo, em se tratando do sistema financeiro. Vivemos em um período de intensa desburocratização e descentralização dos serviços financeiros, realidade que, por óbvio, aumenta ainda mais os desafios a serem enfrentados pelas autoridades em busca de um sistema mais justo.
Felizmente, observa-se movimentação intensa, em especial, por parte das autoridades monetárias e do Conselho Nacional de Justiça no sentido de desenvolver ferramentas e regulamentações capazes de responder à velocidade do avanço tecnológico. Os avanços ainda são insuficientes – talvez sempre o serão –, mas existem e devem ser comemorados.
Ah e, claro, respondendo à pergunta inicial: ativos financeiros em fintechs são passíveis de bloqueio com o advento do novo Sisbajud.
Enio Casella é advogado especialista em Direito do Trabalho e Compliance Trabalhista, coordenador do Battella, Lasmar & Silva Advogados em Belo Horizonte/MG.
[1] CALCINI, Ricardo. Inefetividade do BACENJUD e a crise da execução trabalhista. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/320772/inefetividade-do-bacenjud-e-a-crise-da-execucao-trabalhista. Acesso em: 30 jul. 2021.
[2] Manual do gestor: Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista. Disponível em: http://www.tst.jus.br/documents/10012875/24974827/Manual+do+Gestor_18_09.pdf/8f63722d-7c8f-5923-a985-a5aab8224e02.
[3] Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs.
[4] Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openbanking.
[5] Fonte: http://finnovation.com.br/mapa-de-fintechs-brasil/. Acesso em: 30 jul. 2021.
[6] Fonte: https://dinheirama.com/bancarizacao-uso-cartoes-pagamento-crescem-pais/. Acesso em: 30 jul. 2021.
[7] Fonte: https://www.cnj.jus.br/sistemas/sisbajud/. Acesso em: 30 jul. 2021.
[8] Fonte: https://www.cnj.jus.br/bens-e-valores-de-criminosos-podem-ser-bloqueados-de-forma-sigilosa/. Acesso em: 30 jul. 2021.
[9] AP – 0177100-95;2004.5.06.0005
[10] AP – 0177100-95;2004.5.06.0005, Rel. Des. Gisane Barbosa de Araújo, 4ª Turma. Julgado em 17 de junho de 2021.
[11] Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs. Acesso em: 30 jul. 2021.
[12] Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs, acesso em 30 jul. 2021.
[13] Fonte: https://www.bcb.gov.br/Fis/pedjud/ftp/Regulamento_BacenJud12Dez18.pdf, Acesso em: 30 jul. 2021.
[14] AI – 2085199-24.2021.8.26.0000, Rel. Des. Adilson de Araújo, 31ª Câmara de Direito Privado, Julgado em 25/05/2021.
[15] AI – 1412456-89.2020.8.12.0000, Rel. Des. Marcos José de Brito Rodrigues. 1ª Câmara Cível. Julgado em 27/10/2020.
[16] AP – 0105500-22.1988.5.02.0446, Rel. Des. Liana Martins Cesarin, 3ª Turma. Publicado em 07/04/2021).