O instituto familiar passou por grandes mudanças estruturais ao longo dos anos, rompendo paradigmas e reconstruindo conceitos. Assim, a família deixou de ser, essencialmente, um núcleo econômico e de reprodução, vez que perdeu a sua rígida hierarquia patriarcal e tornou-se muito mais um espaço de amor e afeto.
Sobre tais mudanças, colocamos em destaque a filiação socioafetiva, a qual vem tomando grande espaço no cotidiano das pessoas.
Nesse segmento, é oportuno mencionarmos que a filiação socioafetiva nada mais é do que o reconhecimento jurídico da maternidade e/ou da paternidade com base no afeto, sem que haja vínculo de sangue entre as pessoas. Em outras palavras, é quando um homem ou uma mulher cria um filho como se seu fosse, mesmo não sendo o pai ou a mãe biológica da criança ou do adolescente.
Nesse sentido, é muito comum encontrar padrastos e madrastas que se encaixem na parentalidade do afeto, uma vez que esses podem alcançar as barreiras íntimas dessas crianças, tornando-se responsáveis por seu sustento, criação e educação.
Sobre esse tema, o STF pacificou, em 2016, o conflito que circundava a questão da preponderância da paternidade socioafetiva em relação à biológica. Segundo o entendimento da Corte, não deve haver hierarquia entre a paternidade biológica ou socioafetiva, senão vejamos:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO A BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO – POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES.
(…) 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.
(…) 16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Seguindo o mesmo raciocínio, o enunciado 33 do IBDFAM aduz que a paternidade socioafetiva ou a maternidade socioafetiva produz todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhes são inerentes, senão vejamos:
“Enunciado 33 do IBDFAM: O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que o filho faz jus às heranças, assim como os genitores, de forma recíproca, bem como dos respectivos ascendentes e parentes, tanto por direito próprio como por representação”.
Nesse sentido, a filiação socioafetiva reflete efeitos no âmbito pessoal (uso do nome), bem como no âmbito social (status de filho), a qual produz efeitos nas relações econômicas e patrimoniais, gerando reflexos no direito das obrigações, tais como: prestar alimentos e pleitear alimentos, nos termos do art. 229 da Constituição Federal e Enunciado nº 341 do Conselho da Justiça Federal:
“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
“JCJF 34: Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”.
Assim, como não há distinção entre o filho socioafetivo e o biológico, uma vez declarada a parentalidade socioafetiva, terá o filho os mesmos direitos em relação à prestação alimentar.
Exemplo disso foi a decisão proferida pela 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que determinou que o padrasto pagasse alimentos ao enteado, em decorrência da paternidade socioafetiva.
Por oportuno, transcrevemos a ementa do acórdão:
“APELAÇÃO CÍVEL – Divórcio cumulado com Alimentos – Sentença de improcedência – Réu revel – Insurgência dos autores – Acolhimento em parte. ALIMENTOS A EX-CÔNJUGE – Co-autora que foi casada com o réu entre 09.05.2008 e janeiro de 2015, quando se separaram de fato, certo de que ela já tinha um filho de relacionamento anterior – Alimentos requeridos pela ex-esposa – Obrigação alimentar entre ex-cônjuges que deve ser instituída e mantida somente em situações excepcionais – Conjunto probatório que não evidencia, com convicção, a necessidade alegada pela ex-esposa, inexistindo prova de incapacidade laborativa ou outro fator que justifique a imposição do encargo ao ex-marido – Pedido improcedente. ALIMENTOS AO ENTEADO – Alegada socioafetividade entre o co-autor e o réu – Configuração – Pai biológico do autor que faleceu prematuramente, certo de que ele não conta com o auxílio financeiro de qualquer dos parentes de seu pai, embora já ajuizadas ações de alimentos para este fim – Provas dos autos apontando que o réu sempre tratou o autor como filho, nutrindo grande estima e afeto – Réu que desempenhou a função de pai em fase importante da vida do menor, entre os 06 e 13 anos de idade dele – Alimentos que, em decorrência da paternidade socioafetiva, são devidos – Ausência de elementos acerca dos rendimentos do réu – Única informação constante dos autos é de que ele atua como advogado, em escritório próprio de advocacia – Obrigação que, diante disso, deve ser arbitrada nos termos da jurisprudência assente sobre o tema, em 1/3 dos rendimentos líquidos do alimentante, se trabalhando formalmente, e em 1/3 do salário mínimo para o caso de desemprego ou trabalho informal – Sentença reformada apenas para reconhecer a paternidade socioafetiva e estabelecer alimentos em favor do menor – RECURSO PROVIDO EM PARTE”. (TJ-SP – AC: 10074968320168260590 SP 1007496-83.2016.8.26.0590, Relator: Rodolfo Pellizari, Data de Julgamento: 31/10/2019, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/11/2019 – destaques nossos).
Seguindo, em outras duas recentes decisões, o entendimento do TJSP foi similar ao condenar o padrasto ao pagamento de alimentos ao filho socioafetivo, pela configuração da paternidade socioafetiva. Senão vejamos:
“FIXAÇÃO DE ALIMENTOS. Sentença de parcial procedência, condenando o réu a prestar alimentos de um terço do salário mínimo. Irresignação do réu. Alegação de não paternidade. Matéria já julgada, com trânsito em julgado. Paternidade socioafetiva reconhecida, que não se distingue da biológica. Dever de sustento pelo apelante. Binômio necessidade-possibilidade (art. 1.694, § 1º, CC). Redução da pensão para 25% do salário mínimo. Valor equilibrado em relação aos filhos do apelante e as necessidades dele. Sentença parcialmente reformada. Recurso parcialmente provido”. (TJ-SP – AC: 10094803920198260189 SP 1009480-39.2019.8.26.0189, Relator: Carlos Alberto de Salles, Data de Julgamento: 23/02/2021, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/02/2021 – destaques nossos).
“Reconhecimento de paternidade socioafetiva e alimentos – Elementos dos autos que comprovam satisfatoriamente os fatos alegados na inicial – Menor que conviveu com o réu desde tenra idade – Manutenção, ainda, de fortes vínculos de afetividade entre as partes, apesar dos ressentimentos decorrentes da separação do casal – Atendimento do princípio da dignidade da pessoa humana e da preservação dos vínculos afetivos e da solidariedade – Ação julgada procedente, fixada a pensão alimentícia no valor correspondente a 30% do salário mínimo, à ausência de prova efetiva dos rendimentos do réu – Recurso do autor provido”. (TJ-SP – AC: 10007480920148260007 SP 1000748-09.2014.8.26.0007, Relator: Augusto Rezende, Data de Julgamento: 03/09/2020, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/09/2020- destaques nossos).
Vale ressaltar que a comprovação da filiação socioafetiva se dá pela utilização de provas que demonstrem o vínculo afetivo e de proteção entre as partes e que a relação filial mantida sempre fora pública, consolidada e duradoura.
Ademais, importante lembrar que o pagamento de pensão alimentícia pelo padrasto não elide o pagamento também pelo pai biológico, ou seja, existe a possibilidade da concorrência da obrigação alimentar entre ambos os pais, desde que o pai socioafetivo não possua condições de cumprir satisfatoriamente com a real necessidade alimentar do filho.
Nesse sentido, aduz Belmiro Pedro Welter[1]:
“O filho tem direito aos alimentos dos pais genéticos não apenas quando ocorre a impossibilidade de alimentação pelos pais afetivos, mas também quando há necessidade de complementação da verba alimentar”.
Por fim, trata-se de um entendimento jurisprudencial importante, uma vez que a maioria das pessoas desconhece tal instituto, o que pode causar problemas e desconfortos no futuro. Nos casos de namoro ou união estável em que uma ou ambas as partes possuírem filhos, importante avaliar a conveniência ou necessidade de incluir cláusulas nos respectivos contratos acerca de possíveis intenções (ou sua ausência) no tocante à paternidade ou maternidade socioafetiva.
Por fim, embora as decisões reproduzidas nesse artigo tenham se limitado à questão de alimentos, não seria surpresa que esse entendimento jurisprudencial evoluísse para a seara patrimonial, mais precisamente nas questões sucessórias.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do BLS Advogados.
[1] Belmiro Pedro Welter. Teoria tridimensional do direito de família, 2010. Disponível em http://www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1246467677.pdf)
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Pedro. É isso mesmo. O risco existe e, por isso, as pessoas precisam tomar precauções legais para evitar esse tipo de surpresa.
Quais seriam as precauções?
Melhor precaução é não relacionar com mãe solteira ponto final.
Sinceramente, não sei se “tomar precauções” resolve, pois as precauções seriam não se envolver na vida da criança de forma alguma, seja para levá-la a médico, escola, pagar algum curso, absolutamente fazer nada para a criança, não ir a passeios com ela, não tirar fotos, simplesmente fingir a criança não existe, mas ainda assim, acredito que o sujeito ainda corra o risco de cair numa cilada dessas caso esteja morando com essa criança e a mãe dela. Enfim, é o judiciário militante contribuindo para a piora geral.