Por Priscila Sobhie
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe inúmeras alterações no cenário jurídico, dentre elas, a expressa possibilidade de haver convenção entre as partes sobre regras processuais que devem – ou não – serem observadas durante a tramitação de uma demanda, o que pode incluir situações que envolvem o patrimônio daqueles em vias de se casarem (pacto antenupcial).
A maior novidade, neste particular, é o art. 190 do referido Código, regramento genérico que confere a oportunidade de celebração de ajustes sobre regras de natureza processual, ainda que não exista um dispositivo legal certo e específico a prever aquela determinada convenção; referido artigo contempla, pois, o que a doutrina processual costuma chamar de “Negócios Jurídicos Processuais Atípicos” (NJP).
É certo que o Código de Processo Civil de 1973 já abarcava a faculdade de convenção entre as partes em algumas situações, entre elas, a competência de eleição de foro, mas tal possibilidade se respaldava em alguma previsão legal específica, não existindo uma norma genérica autorizadora para celebração de ajustes a respeito da ordem jurídica processual.
O processo, instrumento à serviço do Estado, prima pelo interesse público da solução dos conflitos e, agora, o juiz e as partes podem adaptar – com menor restrição – os procedimentos e os regramentos de ordem processual, a fim de obterem uma prestação jurisdicional mais eficiente aos interesses, inclusive, dos particulares.
Com essa nova perspectiva contemplada expressamente no Código de Processo Civil em vigor, as partes exercem as suas vontades com maior autonomia, com o objetivo de adequarem e melhor remanejarem as especificidades da causa.
Especialmente no que tange ao âmbito do Direito de Família e Sucessões, os negócios jurídicos processuais ganham ainda mais relevância, pois se faz necessária uma observação detalhista e rigorosa sob as perspectivas dos direitos disponíveis e indisponíveis.
Neste viés, a autonomia privada é um princípio primordial e que possui alusão direta nas relações de Direito de Família, tendo em vista que, tradicionalmente, os modelos antigos de família eram alvos de intervenção estatal, na medida em que a vontade e liberdade das partes eram pouco permitidas.
Assim, o negócio jurídico processual vem ampliar, de forma significativa, a garantia das partes quanto ao poder de manifestação da própria vontade, sem, contudo, ultrapassar os limites impostos pela legislação e sem ofender, inclusive, outros princípios constitucionais.
A partir disso e considerando, ainda, as novas concepções em torno da entidade familiar, verifica-se a maior possibilidade de liberdade negocial dos cônjuges e nubentes. Contudo, insta destacar que o negócio jurídico processual no que se refere ao Direito de Família e Sucessões é limitado, de certa forma, pelas peculiaridades desta esfera.
Segundo o artigo 226 da Constituição Federal, a família é compreendida como a base da sociedade e recebe uma proteção especial do Estado.
Neste sentido, faz-se importante relembrar que, antigamente, a família era considerada aquela constituída unicamente pelos laços matrimoniais, monogâmicos e tradicionais, sendo uma unidade religiosa, econômica, política e jurisdicional, onde o poder familiar era exercido exclusivamente pelo homem (“pater famílias”). A típica família tradicional brasileira caracterizava-se, portanto, pela formação de um casal de sexos opostos (um homem e uma mulher, obrigatoriamente), sendo o marido o chefe deste núcleo, responsável pelo sustento familiar, e a esposa a cuidadora do lar e dos filhos.
O Código Civil de 1916 apenas conferia proteção estatal à família constituída pelo casamento. Contudo, com a Constituição Federal de 1988, esse cenário foi alterado, passando a proteger outras modalidades de formação familiar, bem como ampliando a igualdade de condições entre os cônjuges para o exercício do poder familiar de forma equilibrada. Essa mudança se deu como reflexo de diversos movimentos de contestação dos anos 1960, em nome das liberdades sexuais, dos direitos dos homossexuais e das reivindicações feministas.
Atualmente, a composição familiar fundamenta-se no princípio da afetividade, que atualiza o conceito anterior de família, cujo fundamento era o matrimônio e a procriação.
Outrossim, houve significativa mudança quanto à intervenção estatal na entidade familiar, a qual foi minorada por meio do princípio da intervenção mínima do Estado nas relações familiares, conforme dispõe o art. 1513 do Código Civil.
Especificamente quanto ao pacto antenupcial, o art. 1639 do Código Civil disciplina que: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. Neste sentido, a circunstância negocial do pacto é o casamento, seu conteúdo/objeto refere-se à livre estipulação pelos nubentes a respeito dos seus bens, podendo conter qualquer disposição patrimonial livremente convencionada entre as partes.
Vale mencionar que também podem ser objetos de negociação no pacto antenupcial as questões não patrimoniais, ou seja, de ordem pessoal, como afazeres domésticos e/ou deveres conjugais. Veja, neste aspecto, que a família atual não apenas refere-se à função institucional, seja econômica, política ou religiosa, mas também se destina à uma função eudemonista de busca pela realização pessoal da felicidade de cada um de seus entes.
O Enunciado 492 do Fórum Permanente de Processualistas Civis aduz que: “(art. 190) O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter negócios processuais.” O grande debate do assunto é saber até que ponto os nubentes podem negociar em seu pacto antenupcial.
De tal forma, as partes têm o direito de definir o regime de bens por meio do pacto antenupcial ou até mesmo após o casamento, alterando-o e ajustando-o. Além dos regimes convencionais, é lícito às partes convencionarem para misturá-los ou adaptá-los.
No campo patrimonial e por meio de um NJP, os noivos podem pactuar sobre a administração dos bens comuns e particulares pelos próprios cônjuges ou por um terceiro administrador; investimentos; constituição de fundo monetário, pagamento de despesas; rateio de dívidas; fixação de percentuais distintos em alguns bens, mesmo com o implemento do regime da comunhão parcial. A possibilidade de inserção de cláusulas extrapatrimoniais é defendida por parte da doutrina, sob o fundamento de não haver proibição legal e, também, por ser uma ferramenta eficaz para prevenção ou, ao menos, diminuição de eventuais danos emocionais e psicológicos dos cônjuges e dos filhos. Como exemplo de conteúdo não patrimonial dos contratos pactícios, pode-se citar a dispensa de coabitação (prevista no art. 1.566, inciso II, do Código Civil), os consortes podem manter dois domicílios, renúncia aos deveres de fidelidade e “day off” (sair uma vez no mês, por exemplo, sem o outro).
Outros exemplos permitidos de negócios jurídicos no pacto antenupcial são: cláusulas de instituição de arbitragem para solucionar conflitos patrimoniais do casal; alteração nas regras de doações entre cônjuges; o uso gratuito do imóvel familiar, especialmente quando se tratar de bem particular; reconhecimento voluntário de filhos e a organização da rotina doméstica.
Pode-se citar, ainda, a possibilidade de transação quanto à ampliação ou redução de prazos, possibilidade de divórcio como decisão parcial de mérito, rateio de despesas processuais, dispensa consensual ou nomeação de assistente técnico, exclusão de efeito suspensivo de eventuais recursos; não promoção de execução provisória; não realização da audiência preliminar obrigatória do art. 334 do Código de Processo Civil; pacto de prévia disponibilização de documentação, obrigatoriedade de apresentação de declarações de imposto de renda, extratos bancários, etc.; estipulação de cláusulas que considerem ilícitos certos meios de provas, os quais não poderão ser utilizadas em eventual e futuro litígio de divórcio, visando a preservação da vida privada do casal.
Por outro lado, questões como educação de futuros filhos, assim como congelamento de embriões para futura obrigatoriedade de ter os filhos, mesmo após divorciados ou falecidos, não podem ser objeto de negociação, tendo em vista envolver direitos indisponíveis de menores. Assim, o mais adequado é aguardar o nascimento e circunstâncias futuras para adequar ao melhor interesse da criança e/ou adolescente.
Igualmente, apesar de muito debatido, não é possível haver a renúncia prévia à herança e nem a eventuais pensões, por ser tratarem, obviamente, de matérias incertas e imprevisíveis, não podendo renunciar logo de início, com base no art. 1707 do Código Civil. Sobre as pensões, a sua renúncia prévia no pacto não pode ser implementada, por ser questão de subsistência. Por outro lado, pode haver uma cláusula prevendo que, caso ambos possuam condições para o auto sustento, trabalho e renda fixa etc., poderá ser renunciada.
De tal modo, apesar de ser um tema recente e gerar muitas discussões, certo é que a negociação entre os nubentes, seja por meio do pacto antenupcial ou até mesmo após a celebração do casamento, é um meio necessário, eficaz e apropriado para que o casal discuta abertamente e sem constrangimentos sobre regras econômicas e cotidianas sem valor patrimonial, visando garantir maior segurança jurídica em eventual litígio e menores constrangimentos e danos psicológicos a todos os envolvidos.
Priscila Sobhie é advogada e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP e em Direito de Família e Sucessões.