A complexidade das estruturas dos trusts, nem sempre é bem compreendida pelas autoridades brasileiras, fazendo que elas adotem entendimentos nem sempre coerentes.
Como sabemos o instituto do Trust originário do direito anglo-saxão, é bastante usado nos países cujo sistema jurídico é conhecido como common law e sua utilização e efeitos nos países de origem romano-germânica, como o Brasil, sempre traz controvérsias e discussões. Talvez um dos pontos mais polêmicos do funcionamento do Trust para nosso sistema jurídico seja a discussão sobre a separação e transferência de propriedade, ou seja, com a instituição do Trust o patrimônio deixa de ser do constituinte (settlor)? Se sim, passa esse patrimônio a ser do próprio Trust, do fiduciário (trustee) ou dos beneficiários?
Ligada à essa controvérsia, comentamos hoje sobre a decisão proferida no âmbito do Banco Central sobre a obrigatoriedade de entrega da Declaração de Capitais e Bens do Exterior (DCBE) por pessoa com patrimônio no exterior sob um Trust. O No caso em questão[1], uma pessoa discutia justamente esse ponto ao recorrer de multa de que lhe foi exigida pela entrega em atraso da referida DCBE referente ao ano de 2014.
Em sua defesa, o declarante pessoa alegou que: a) não tinha obrigação legal de entregar a DCBE na medida em que não possuía bens em seu nome e sim sob a estrutura de um Trust; b) as orientações para preenchimento da DCBE não continham disposições sobre como declarar os bens nessa situação; c) e somente em 2016 isso passou a constar das orientações do BACEN, cuja a alteração não possuía base legal; e d) considerando que já havia declarado os bens à Receita Federal, a multa deveria ser mitigada pela demonstração de boa-fé.
Em decisão de agosto de 2021 o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional confirmou a multa aplicada por conta da entrega em atraso da DCBE e reafirmou que as disposições que obrigam a entrega dessa declaração são abrangentes, alcançando ativos de qualquer natureza, inclusive os que o declarante não possui controle direto da gestão, como no caso de Trust.
Sob esse último aspecto destaca-se que esse ponto já foi objeto de análise nos pareceres jurídicos do BACEN e da PGFN[2] no qual se defendeu o desdobramento do domínio dos ativos no caso dos Trusts, mas a despeito de haver a transferência de determinados aspectos patrimoniais ao fiduciário (trustee), o settlor nunca é privado do título jurídico de proprietário. Ou seja, mesmo tendo o trustee a propriedade formal, o que impõe alguma restrição ao settlor, é certo que ele e os demais favorecidos têm contra o trustee direitos, pretensões e ações de natureza real e pessoal e, portanto, interesses juridicamente protegidos e caracterizadores da propriedade. Por conseguinte, essas pessoas têm a obrigação de declarar ao BACEN os ativos detidos em Trust como capitais detidos no exterior.
Referidos pareceres foram emitidos por ocasião do caso do então Deputado Eduardo Cunha, de conhecimento público e, apesar de se referirem às situações específicas, têm servido de diretriz para casos similares, que é o que nos parece ser o caso que foi o objeto da decisão do processo mencionado.
Contudo, não necessariamente todos os Trusts são sujeitos ao mesmo tratamento jurídico, pois, os Trusts podem ter variações significativas na sua forma e características, tais como as de constituição e vigência (revogáveis ou irrevogáveis) e funcionamento e gestão (discricionários ou não-discricionários), o que sem dúvida pode afetar o entendimento das autoridades e seus reflexos jurídicos, quer tributários ou mesmo sucessórios.
Vale lembrar que por ocasião do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, instituído pela Lei nº 13.254/2016 (“Repatriação” como ficou conhecida), as autoridades através de “Perguntas e Respostas” se manifestaram no sentido de que eram os beneficiários as pessoas que deveriam declarar os ativos detidos sob um Trust, incluindo o settlor se esse figurar entre os beneficiários.
Notem que apesar de serem ambas manifestações de entendimento das autoridades responsáveis pelo assunto em questão (forma de declarar o Trust), as manifestações partem de prismas distintos, quais sejam: i) mero desdobramento do domínio sem transferência de propriedade, no caso dos pareceres; e ii) obrigação dos beneficiários tendo esses a propriedade ou não. Assim, permanece a nossa recomendação para que as situações sejam analisadas caso a caso tanto para a elaboração da DCBE, bem como para a constituição de estruturas de investimento ou sucessórias no exterior, a fim de que possamos, na medida do possível, compatibilizar os regimes jurídicos e reduzir os potenciais conflitos e riscos.
Osmar Marsilli Junior é advogado tributarista, especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Marafon, Soares, Nagai & Marsilli Advogados.
[1] Proc. Nº 10372.100091/2021-41 Conselho de Recursos do SFN.
[2] Parecer nº 141/2016 BCB/PGBC e Parecer PGFN/CAF/NUCAF/CRSFN nº 075/2017
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