Por David Roberto R. Soares da Silva
Até recentemente, poucos se preocupavam com o seu planejamento sucessório, entendido como a organização do patrimônio para transmissão à próxima geração. Alguns podiam até considerar o assunto, mas daí a colocar o planejamento em prática era uma outra história, por vezes interrompida por outras prioridades.
Um dos principais obstáculos ao planejamento sucessório é de natureza cultural. O brasileiro é um ser humano alegre, sociável, divertido, cheio de vida, e admitir a sua finitude é muito difícil. Assim, evita pensar no seu fim. Mas não pensar no assunto não resolve o problema, pois a morte, um dia, virá.
A pandemia da Covid-19 mudou muita coisa. Pessoas perderam entes queridos, fazendo a morte ficar mais perto. Sem respeitar a ordem natural das coisas, vimos pais enterrando filhos e avós enlutados por seus netos. E isso parece ter forçado as pessoas a repensar seus conceitos e a olhar o planejamento sucessório como medida preventiva para evitar conflitos futuros entre herdeiros.
Entre as várias ferramentas disponíveis, a doação é uma das primeiras a serem consideradas quando se decide tomar alguma providência sucessória, pois ela oferece vantagens ao doador, aos donatários e à família como um todo.
A doação tem como ponto forte reduzir as possibilidades de litígio entre herdeiros após a morte do doador ao transferir os bens deste à propriedade dos primeiros. Como consequência, os bens não serão incluídos no inventário e, em princípio, não poderão ser objeto de discussão entre os herdeiros. Na prática, quanto menos bens forem deixados para inventário, mais rápido será o processo e menores as chances de conflito. A doação ainda permite atribuir certos bens a herdeiros específicos por razões sentimentais (carro antigo a um filho colecionador), econômicas (fazenda ao filho agricultor) ou outras. Outra vantagem é a proteção do patrimônio. O adiantamento da sucessão pela doação ao herdeiro pode evitar que problemas financeiros, empresariais ou judiciais do doador acabem contaminando o patrimônio familiar.
A sua implantação, no entanto, requer cuidados para que não se prejudique herdeiro necessário nem que se transforme essa útil ferramenta em fonte de conflitos ainda maiores do que aqueles que se pretendia evitar.
Doação é um contrato em que alguém, voluntariamente, transfere um bem de sua propriedade para o patrimônio de outra pessoa sem nenhuma contraprestação1. Com raríssimas exceções2, ela deve ser feita por escrito, por meio de escritura pública ou contrato particular3. A principal obrigação do doador é a entrega efetiva da coisa doada, enquanto cabe ao donatário a sua aceitação.
Sendo feita a herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), as doações em vida poderão ser feitas a título de (1) antecipação de legítima ou (2) com dispensa de colação. No primeiro caso, a doação deverá ser informada no inventário para que seja deduzida do quinhão final que caberá ao beneficiário. Já na doação com dispensa de colação, o valor recebido não precisa ser informado no inventário nem deduzido da herança a que se tem direito do donatário.
Em regra, a doação de ascendente para descendente e entre cônjuges é considerada antecipação de legítima, salvo disposição em contrário. No silêncio presume-se que a doação é feita em antecipação de legítima. Daí a importância de se determinar, no ato da doação, se ela se dá com dispensa de colação. Na antecipação de legítima, o herdeiro recebe antecipadamente a parte que lhe cabe da herança. Por essa razão, deverá informar (trazer à colação) os valores recebidos em doação quando ocorrer a abertura da sucessão. A colação tem por objetivo igualar, no inventário, as legítimas dos herdeiros, computando as doações recebidas durante a vida do doador para que nenhum herdeiro receba mais do que a lei lhe garante.
Questão recorrente na colação de bens é o valor pelo qual devem ser reportados no inventário: se pelo valor original à época da doação ou pelo valor corrente na época de abertura da sucessão. Dado que o tempo e a inflação corroem o poder de compra, a não atualização do valor de uma doação pode beneficiar ou prejudicar indevidamente um herdeiro. A matéria é controversa com várias alterações legislativas e decisões contraditórias. Mas a tendência mais atual – baseada no Código de Processo Civil de 20154 – é no sentido de que se atualize o valor das doações, seja por meio de correção pela inflação5, seja pela verificação do valor venal atual no caso de bens imóveis6.
A eficiência fiscal é outro aspecto relevante da doação. Com uma tendência de aumento da alíquota do ITCMD – que vem ocorrendo desde 2015 –, o adiantamento do patrimônio aos herdeiros pode significar economia tributária futura. Além disso, há estados que estabelecem alíquotas menores para doações do que para heranças7. Se, de um lado, a doação adianta o pagamento de imposto devido no inventário, por outro elimina o risco de tributação mais alta no futuro.
As vantagens da doação ainda incluem a possibilidade de inserção de cláusulas protetivas e restritivas a depender da necessidade de cada um. Não se pode assumir que todas elas se adéquem a todos os casos, daí a necessidade de uma análise cautelosa sobre os efeitos que causarão numa dada doação.
O usufruto é um dos institutos mais usados em doações no âmbito do planejamento sucessório, especialmente para imóveis, participações societárias e fundos fechados. Por meio dele, segregam-se direitos entre usufrutuário e nu-proprietário, permitindo-se a transmissão imediata do bem ao donatário (nu-proprietário), reservando ao doador (usufrutuário) as vantagens de usar e aproveitar os frutos e rendimentos gerados por ele. Pode ser vitalício ou temporário e, com a morte do doador ou o advento do prazo, o usufruto se extingue e a propriedade se consolida na pessoa do nu-proprietário.
A cláusula de reversão é uma das mais importantes ao se considerar uma doação. Ela permite ao doador estipular que o bem doado volte ao seu patrimônio se o donatário morrer antes do doador. A reversão deve estar expressa no instrumento de doação e é muito utilizada por pais que doam bens aos filhos, mas não desejam que, se o filho falecer antes dos pais, o bem possa ser herdado pelo cônjuge. Ela permite que o bem retorne à propriedade dos pais, que poderão, então, doá-lo diretamente aos netos sem qualquer participação do cônjuge naquele bem. Um cuidado que se deve ter com a reversão é com relação à venda do bem. A reversão pode alcançar o bem já vendido e, desejando vendê-lo, deve o donatário procurar a sua revogação junto ao doador.
Outras cláusulas que podem ser incluídas na doação são:
Inalienabilidade: impede que os bens doados sejam alienados a qualquer título pelo donatário (ex. venda, doação, permuta, alienação fiduciária). Não é recomendada na maior parte dos casos, mas há exceções (ex. filhos menores).
Incomunicabilidade: impede que os bens doados façam parte do patrimônio comum de um casal se o donatário estiver casado ou vier a se casar ou manter união estável. Pode incluir também os frutos (lucros, juros, aluguéis etc.).
Impenhorabilidade: impede que os bens doados sejam penhorados para o pagamento de dívidas do donatário ou dados em garantia de empréstimos tomados.
O Código Civil de 2002 dificultou um pouco a aplicação dessas cláusulas, exigindo “justa causa” para a sua instituição, especialmente nos casos envolvendo a parcela da legítima. Por isso, é sempre recomendável a inserção de cláusula de “justa causa” nas doações que imponham essas restrições. Ela não interfere no ato da doação, mas deixa claras as razões do doador para a sua instituição, diminuindo as chances de questionamento judicial futuro. Não há uma definição legal do que seja “justa causa” e os especialistas divergem sobre quão específicas devem ser as motivações do doador.
Do lado negativo, a principal desvantagem da doação é ser irrevogável e definitiva, não permitindo arrependimento ou revogação, exceto em casos extremos8, além de exigir o pagamento do imposto sobre doações (ITCMD).
Assim, tem-se na doação uma ferramenta poderosa de planejamento sucessório. Mas, dadas as suas peculiaridades, seus efeitos e seu caráter irrevogável, a utilização da doação no planejamento sucessório não pode ser banalizada ou subestimada. Sua implantação deve contar com apoio jurídico adequado que permita a avaliação correta da conveniência e da necessidade de cada uma de suas cláusulas.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2018), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA EDIÇÃO 24 DA CFP® Professional Magazine.
[1] Código Civil, art. 12.
[2] Bens móveis e de pequeno valor podem ser doados verbalmente.
[3] A escritura pública é obrigatória para bens imóveis de valor superior a 30 salários mínimos.
[4] Lei nº 13.105/2015, art. 639, parágrafo único.
[5] Tribunal de Justiça de São Paulo: Agravo de Instrumento 2192746-31.2018.8.26.0000, de 11/02/2019.
[6] Tribunal de Justiça de São Paulo: Agravo de Instrumento 2260318-33.2020.8.26.0000, de 28/05/2021.
[7] Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí e Rio Grande do Sul.
[8] Ex. atentado contra a vida do doador ou de seus familiares, ofensa física, injúria grave etc.
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