Por David Roberto R. Soares da Silva
Quando pensamos em planejamento sucessório, a ideia central é sempre proteger e transmitir o patrimônio para a próxima geração. Mas, há situações nas quais se queira ir além, garantindo moradia a um ente querido que não seja necessariamente herdeiro. É nesse momento que o direito real de habitação pode ser útil.
O direito real de habitação é um instituto conhecido no Direito brasileiro que permite ao proprietário conferir a uma ou mais pessoas o direito de habitar gratuitamente um imóvel com sua família.
A modalidade mais comum é aquela aplicável ao cônjuge sobrevivente, instituído pelo Estatuto da Mulher Casada[1], e que estabeleceu o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão universal de bens enquanto permanecesse viúvo, sem prejuízo da participação que lhe coubesse na herança.
Posteriormente, o Código Civil de 2002 ampliou o alcance dessa regra ao cônjuge sobrevivente, independente do regime de bens de seu casamento, conferindo-lhe o direito de permanecer residindo no imóvel do casal após o falecimento de seu cônjuge, desde que aquele imóvel, usado para moradia, seja o único bem de natureza residencial a ser inventariado. Se houver mais de um imóvel residencial a ser inventariado, como, por exemplo, um para moradia do casal e outro para locação residencial, não haverá direito à habitação.
Por se tratar de direito sucessório conferido ao cônjuge sobrevivente, esse direito deve ser pleiteado formalmente no inventário, não sendo aplicado de forma automática. Mas, note que se trata de mero direito à moradia e não se usufruto. Diferentemente do usufruto, o direito real de habitação não permite ao cônjuge sobrevivente explorar o imóvel explore economicamente.
O direito real de habitação do cônjuge ou companheiro sobrevivente é o que se denomina direito real de habitação legal, ou seja, aquele que se dá por força de expressa disposição de lei. Todavia, essa não é a única modalidade de direito real de habitação.
Menos conhecido, mas também previsto no Código Civil, o direito real de habitação voluntário ou convencional permite ao proprietário de um imóvel residencial conferir direito de habitação a um terceiro para ocupá-lo gratuitamente com sua família. Essa modalidade é regulada pelos arts. 1.414 a 1.416 do Código Civil
O direito de propriedade confere ao proprietário o direito de usar, gozar (fruir) e dispor (vender) o bem, assim como recuperá-lo em caso de posse indevida[2]. No usufruto, o nu-proprietário transfere ao usufrutuário a posse, uso, administração e a percepção dos frutos (por exemplo, aluguéis), ou seja, os direitos de “usar” e “gozar”, mantendo para si os direitos de “dispor” e “reaver”. No direito real de habitação, o proprietário transfere ao beneficiário ainda menos direitos do que no usufruto. Especificamente, ele transfere apenas o direito de “usar”, fazendo com que o “usuário” somente possa habitar o imóvel sem obrigação de pagar aluguel, mas impedindo a exploração econômica como ocorre no usufruto.
A aplicação subsidiária das disposições do usufruto ao direito real de habitação permite significa dizer que, sempre que não forem incompatíveis com a natureza exclusiva de uso do imóvel para moradia, as regras do usufruto devem ser observadas. Entre elas, vale mencionar:
- instituição por meio de ato de última vontade (testamento) ou por escritura pública;
- possibilidade de o direito de habitação ser vitalício, por prazo determinado ou sujeito à ocorrência de evento futuro (ex., se o usuário adquirir imóvel residencial, o direito deixa de existir);
- registro na matrícula do imóvel;
- desnecessidade de pagar pelas deteriorações pelo uso do imóvel;
- dever de pagar as despesas ordinárias de conservação e os impostos decorrentes da posse, salvo disposição escrita em contrário.
Do ponto de vista de planejamento sucessório, o direito real de habitação voluntário pode não parecer trazer qualquer benefício, especialmente quando se considera a opção do usufruto.
No entanto, podem existir situações na quais se queira garantir direito de moradia a alguém — familiar ou não — sem lhe conferir direito de explorar economicamente o imóvel.
Exemplo: uma pessoa divorciada com filhos menores e que pretenda garantir moradia gratuita aos pais ou a um irmão que já habitam um imóvel de sua propriedade. Pelas regras sucessórias, nem os pais nem o irmão são herdeiros necessários, não fazendo jus a qualquer parcela da herança. Na morte dessa pessoa, seus filhos herdarão todo o patrimônio e poderão fazer o que bem quiserem com o imóvel. A situação pode ser ainda mais complicada se o ex-cônjuge do morto assumir a administração dos bens dos filhos menores.
Embora algumas alternativas sejam possíveis, como a doação, o legado ou o usufruto instituido por testamento ou escritura pública, cada uma delas possui suas próprias características, limitações, prós e contras. A doação e o legado resultam na transaferência efetiva da propriedade ao donatário ou legatário, e o usufruto permite o auferimento de renda com a locação da coisa, sem contar que todas elas são fato gerador do ITCMD (imposto sobre doações e heranças).
Uma opção viável é a instituição de direito real de habitação, permitindo aos pais, ao irmão, ou até mesmo a um amigo, o uso do imóvel como moradia sem qualquer pagamento de aluguel. Do ponto de vista tributário, a instituição do direito real de habitação não deveria dar ensejo ao pagamento do ITCMD, dado que não se confunde nem com a doação nem com o usufruto, ambos sujeitos ao imposto estadual. Todavia, o assunto não é livre de controvérsias.
A lei paulista do ITCMD, por exemplo, não prevê a instituição ou transmissão do direito real de uso de moradia entre as hipóteses de incidência do imposto estadual. O Paraná, por outro lado, determina a incidência do imposto, estabelecendo como base de cálculo a metade do valor do bem, o mesmo ocorrendo no Rio de Janeiro.
Independentemente da questão tributária, o direito real de habitação voluntário, no âmbito do planejamento sucessório, pode ser útil nos casos em que se deseja garantir o direito à moradia de uma pessoa querida sem transferir-lhe a propriedade em si ou conceder-lhe o usufruto do imóvel.
[1] Lei nº 4.121/1964.
[2] Código Civil, Art. 1.228.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2018), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.