Por David Roberto R. Soares da Silva
Na Parte 1 deste artigo, tratei sobre o regime de tributação do produtor rural, comentando sobre suas vantagens, como a dedução fiscal dos dispêndios com máquinas, equipamentos, benfeitorias etc., e a compensação de prejuízos apurados em anos anteriores, especificidades essas que não estão disponíveis para as demais atividades produtivas exercidas pelas pessoas físicas.
No artigo de hoje, o foco será o planejamento patrimonial e sucessório propriamente dito, que exige algumas cautelas por parte de quem auxilia o produtor rural para se evitar surpresas desagradáveis. E essas cautelas são necessárias em razão do próprio regime tributário a que se sujeita o produtor rural. Adotar uma solução “de prateleira” sem uma cuidadosa revisão tributária é uma receita para o desastre.
Mas vamos ao que interessa.
Nas últimas décadas, a produção rural passou a ser chamada de “agronegócio”, revelando o crescimento da importância desse setor para o PIB nacional. O agro brasileiro evoluiu de tal forma que fez com que a produção rural deixasse de ser apenas aquela exercida por pequenos agricultores e suas famílias, para incluir, também, grandes produtores que exploram centenas ou milhares de hectares de terra, empregando centenas de pessoas e investimentos chegando à casa dos muitos milhões anualmente. Soma-se a isso a valorização permanente das terras cultiváveis, fazendo com que a cada ano novas fronteiras agrícolas se abram país afora, especialmente ao norte.
Talvez por uma questão cultural, não é difícil encontrar enormes empreendimentos rurais concentrados nas mãos da pessoa física do produtor rural, o que certamente poderá trazer consequências indesejáveis, seja no âmbito familiar, seja no aspecto econômico e sucessório. O falecimento do produtor rural sem qualquer planejamento patrimonial e sucessório poderá ser fonte de inúmeros problemas aos seus sucessores.
Nesses casos, disputas entre herdeiros não são raras, especialmente quando nem todos os sucessores exercem a atividade rural, situação que ainda pode ser agravada com a ingerência, nem sempre bem-vinda, de agregados à família (genros e noras). Na impossibilidade de um acordo sobre a partilha dos bens do falecido, a falta de planejamento também pode acarretar a indesejada situação de condomínio sobre as terras rurais, em que alguns ou todos os sucessores se tornam coproprietários das mesmas terras. Esse é um dos piores cenários possíveis, pois a copropriedade exige que o arrendamento e a venda da terra tenham a concordância de todos os proprietários. A falta desse acordo unânime pode prejudicar a exploração da terra e, pior, imobilizar um patrimônio valioso, sem falar nas possíveis disputas judiciais para desmembramento da terra.
A isso se some o encarecimento da sucessão com repercussões econômicas e financeiras para os sucessores, especialmente no que tange ao ITCMD (imposto sobre heranças) sobre terras potencialmente valorizadas. É comum ver produtores rurais com patrimônio gigantesco, mas altamente imobilizado, que não contam com liquidez suficiente para que seus herdeiros façam frente às vultosas despesas sucessórias, como custos de inventário, advogados e o pagamento de ITCMD. A depender do valor das terras e da liquidez deixada aos sucessores, terras altamente cobiçadas podem ter que ser vendidas às pressas no curso do inventário para o pagamento de despesas, prejudicando a continuidade da atividade rural.
A holding rural surge como uma ferramenta interessante de planejamento patrimonial e sucessório.
Similar à holding imobiliária e familiar, a holding rural permite que o produtor rural confira imóveis rurais, máquinas e equipamentos ao capital social da empresa, deixando de ser o titular desses bens. No âmbito da holding, é possível adotar regras de governança corporativa, incluindo acordo de acionistas/sócios, conselho de administração e diretoria profissional para a gestão do patrimônio, antes de se promover a doação das ações ou quotas aos herdeiros.
Para famílias mais numerosas, não se pode descartar a criação de um “protocolo de família”, que pode ser comparado a um estatuto de uma empresa, mas com a finalidade de estabelecer um fórum de discussão de assuntos relevantes, podendo incluir regras para a resolução de conflitos familiares, valores a serem seguidos por seus membros e até mesmo formas como a família deve se relacionar com os bens da atividade produtiva ou bens detidos em comum.
Do ponto de vista patrimonial, a holding evita que as propriedades rurais sejam herdadas em condomínio pelos sucessores ou sejam objeto de acirrada disputa durante o processo de inventário. Como já mencionado, o condomínio de vários herdeiros sobre a mesma propriedade exige que a sua venda ou arrendamento seja acordada de forma unânime por todos; uma simples discordância de um único herdeiro pode impedir a celebração de um negócio tido como favorável por todos os demais. Isso tudo sem falar na necessidade de outorga conjugal para a venda de imóveis, especialmente para aqueles casados sob o regime da comunhão parcial ou em união estável não formalizada.
A outorga conjugal é um tema pouco comentado, mas muito importante no planejamento patrimonial, especialmente naquele envolvendo holding. Essa outorga exige a concordância do outro cônjuge para a prática de certos atos da vida privada, como a venda de imóveis, a prestação de garantia ou até mesmo doação em alguns casos[1]. Sem a outorga, o negócio é nulo.
A outorga está prevista no Art. 1.647 do Código Civil, que diz:
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III – prestar fiança ou aval;
IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.
A outorga conjugal é, portanto, a autorização dada por um cônjuge para que o outro venda um imóvel que lhe é particular, o que inclui aquele adquirido antes do casamento ou união estável e o imóvel adquirido por doação ou herança. Voltando ao tema do planejamento patrimonial e sucessório, sem a holding rural, cada herdeiro casado ou em união estável[2] deverá obter a outorga conjugal do seu cônjuge ou companheiro para a venda de qualquer imóvel rural que seja herdado. A negativa do cônjuge em dar a outorga conjugal exige a propositura de medida judicial. É o que estabelece o Art. 1.648 do Código Civil:
Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.
Um problema dessa natureza pode significar a perda de oportunidade de ganho de milhões de reais para a família.
Mas, conferidas as terras para a holding, o seu contrato ou estatuto social poderá prever regras especificas para a celebração de contratos, sendo que a decisão da maioria deverá ser respeitada pela minoria discordante, sem prejuízo que esta receba o seu quinhão do negócio. Depois de conferidos os imóveis para a empresa, a outorga para a venda dos bens não mais será necessária, dado que o titular não será mais a pessoa física, mas a pessoa jurídica, não se aplicando o disposto no Art. 1.647 do Código Civil. Essa dispensa é reforçada pelo que diz o Art. 978 do Código Civil, que dispõe:
Art. 978. O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real.
No âmbito do planejamento sucessório, a doação da participação (ações ou quotas) da holding rural aos sucessores deve vir acompanhada das precauções de praxe, como as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e reversão. A reserva de usufruto é também recomendada, permitindo que o produtor rural mantenha total controle do poder decisório e usufrua dos benefícios econômicos da holding até o seu falecimento ou eventual renúncia do usufruto.
Do ponto de vista tributário, a holding rural também pode significar economia tributária, especialmente do ITCMD. Na doação de bem imóvel por pessoa física, o ITCMD normalmente incide sobre o valor venal, valor de referência ou valor de mercado, a depender do estado da federação onde se localiza o bem. Esse valor tende a ser maior do que o valor declarado na Declaração de Ajuste Anual. No caso de doação de quotas ou ações de empresas, a regra geral é a de que a base de cálculo do ITCMD é o valor do patrimônio líquido da empresa. Ora, se a empresa for capitalizada mediante conferência de bens imóveis pelo valor constante da Declaração de Ajuste Anual, e sendo esse valor menor do que o valor de mercado ou de referência do imóvel, a doação ou herança das quotas/ações terá uma base de cálculo do ITCMD menor do que se o imóvel fosse doado/herdado diretamente.
Mas algumas precauções devem ser tomadas para que o produtor não perca os benefícios tributários associados à atividade rural, os quais descrevemos na Parte 1 deste artigo.
A conferência das propriedades rurais para a holding rural poderá ser feita, por exemplo, com reserva de usufruto ao produtor, garantindo-lhe, de forma vitalícia, o direito de explorar a terra da forma como melhor lhe convier. Além da reserva de usufruto na conferência das terras para a holding, outras formas contratuais também são possíveis para se manter o vínculo entre o produtor rural e a holding, como o contrato de parceria, o arrendamento e o comodato. A vantagem ou desvantagem no uso de cada um desses instrumentos dependerá de uma análise de cada caso concreto, levando em conta os interesses do produtor, de sua família e os objetivos pretendidos com a criação da holding rural.
No tocante à capitalização de máquinas e equipamentos, a sua conferência ao capital da holding deve ser precedida de criteriosa análise sobre se esses bens foram deduzidos como despesas de investimento nos anos anteriores. Se houve essa dedução, o produtor rural deverá revertê-la no ano da capitalização e tratar o valor dos equipamentos como receita da atividade rural daquele ano. Nesse caso, o reconhecimento dessa receita gerar IR a pagar no ano da capitalização.
Por outro lado, a conferência de máquinas e equipamentos ao capital da holding rural pode oferecer oportunidades interessantes tanto ao produtor como aos sócios da holding que não exercem atividade rural. Esses bens podem ser alugados pela holding ao produtor permitindo que ele deduza o valor do aluguel como despesa da atividade rural. Por outro lado, a receita de locação auferida pela holding estará sujeita a uma tributação menor do que se fosse auferida por pessoa física, podendo ser distribuída aos demais sócios. Essa pode ser uma opção interessante de remuneração dos familiares que não participem diretamente da atividade rural, situação nada incomum no meio rural.
O mesmo tratamento (necessidade de reversão de despesa dedutível) ocorre com a capitalização de benfeitorias na propriedade rural: se tiverem sido deduzidas para fins de IR da atividade rural, a sua capitalização exigirá a reversão da dedução com o reconhecimento do valor correspondente como receita da atividade rural.
Outro ponto de atenção diz respeito aos contratos de arrendamento rural. Os recebimentos de arrendamento de imóvel rural (sob o qual o proprietário/arrendador não participa dos riscos da atividade rural) não são rendimentos da atividade rural, mas equiparados a aluguéis e tributados de acordo com as regras do Carnê-Leão. Se o valor dos arrendamentos rurais for preponderante nas receitas da holding rural, a conferência de todos os imóveis rurais sofrerá a incidência do ITBI, gerando um impacto financeiro significativo logo na constituição da empresa. Por outro lado, haverá economia tributária sobre o valor dos arrendamentos recebidos, dado que a tributação de aluguéis como renda imobiliária na holding rural é significativamente menor do que a tributação pelo IR na pessoa física.
Como se vê, o planejamento patrimonial e sucessório do produtor rural pode envolver a criação de uma holding, mas essa alternativa deve ser precedida de análise criteriosa de diversos aspectos, especialmente os tributários. A holding traz vantagens, mas, se mal planejada, pode ser fonte de vários dissabores.
Por fim, ainda vale dizer que o planejamento patrimonial do produtor rural ainda pode envolver uma outra espécie de empresa: a empresa agropecuária, que também explora a atividade rural e possui regime tributário diferenciado. Mas esse tema fica para um outro artigo.
[1] A outorga conjugal não deve ser confundida com a participação no processo de venda quando ambos os cônjuges são proprietários. Nesse caso, não há outorga conjugal, mas um consenso de duas partes sobre a venda de um bem que lhes é comum.
[2] Exceto no regime da separação total de bens e na participação final no aquestos, se previsto em pacto antenupcial.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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