Mais uma vez, os Estados Unidos (EUA) fizeram uso de bazuca para exterminar formigas. Preocupados com a ameaça de perda de receita trazida por Digital Services Taxes (DSTs) unilateralmente criados ao redor do mundo, o Tesouro Americano e a Internal Revenue Office (IRS) promulgaram nova regulamentação do crédito sobre impostos de renda pagos no exterior (fora dos EUA) por contribuintes americanos (o foreign tax credit, ou FTC). As novas regras, desenhadas para impedir que DSTs gerassem FTC, acabou atingindo um espectro bem maior de tributos, entre os quais algumas modalidades do Imposto de Renda brasileiro que sempre incidiram sobre rendimentos remetidos a contribuintes dos EUA.
Criados como mecanismo de pressão para que os EUA sentassem à mesa da OCDE e negociassem a criação multilateral de um novo poder tributante para as jurisdições onde se situem os mercados consumidores de produtos e serviços que grandes grupos multinacionais vendem remota e digitalmente (as chamadas “jurisdições de mercado”, conceito novo e revolucionário para o direito tributário internacional), que assim devem passar tributar parte dos lucros globais desses grandes grupos (o chamado “Montante A”), os DSTs tributavam a receita bruta desses grupos segundo critérios (compras, fornecimento de dados, uso de plataformas etc.) ligados ao mercado consumidor de produtos e serviços digitais, independentemente do vendedor ter uma presença tributável na jurisdição de mercado.
Bem, os EUA voltaram à mesa, o Montante A está próximo de ser uma realidade e a maioria dos países já extinguiu seus respectivos DSTs. Porém, seja por descompasso legislativo, seja mesmo por uma ponta de rancor, a nova regulamentação americana endureceu os critérios para reconhecimento do FTC em várias frentes: restringiu o uso de tratados internacionais para evitar a dupla tributação e redesenhou aspectos dos requisitos tradicionais segundo os quais um tributo estrangeiro é um net income tax elegível ao FTC. Porém, a principal mudança foi a introdução de um novo requisito, o requisito de atribuição, que explicarei adiante.
1. Requisitos para um tributo estrangeiro gerar FTC
Em brevíssimas linhas, para ser um net income tax, o tributo estrangeiro agora precisa atender os requisitos de realização, receita bruta, recuperação de custos e atribuição. Pelo requisito de realização, o tributo estrangeiro somente incide quando o contribuinte realiza seu ganho (p.ex., a venda ou alienação de um bem ou direito ou a prestação de um serviço)[1]. Pelo requisito da receita bruta, começa-se a mensurar a base de cálculo do tributo a partir da receita bruta[2] (gross receipts) do contribuinte. Pelo requisito da recuperação de custos, o tributo deve permitir a dedução, da receita bruta, dos principais custos e despesas experimentados pelo contribuinte[3], de modo a que a base de cálculo do tributo, que se começou a mensurar a partir de sua receita bruta, desague na sua renda líquida (net income).
2. O requisito de atribuição
Como já adiantei, o requisito de atribuição é a grande novidade da nova regulamentação. Se o tributo estrangeiro atende os requisitos de realização, receita bruta e recuperação de custos, mas não atende o requisito de atribuição, então os EUA não o consideram um net income tax e, consequentemente, não reconhecem o respectivo FTC (imposto pago no exterior) ao contribuinte americano. O requisito de atribuição aplica-se diferentemente a residentes e a não-residentes do país estrangeiro.
2.1 Residentes do país estrangeiro
O tributo estrangeiro pode incidir sobre os rendimentos mundiais de seus residentes, desde que suas regras de preços de transferência (transfer pricing) aloquem os rendimentos de partes ligadas (geralmente empresas do mesmo grupo econômico) segundo princípios arm’s length, sem levar em consideração a localização de seus consumidores, usuários ou qualquer outro critério baseado na destinação de seus produtos ou serviços.
De sua vez, as regras de transfer pricing brasileiras são notoriamente divergentes dos padrões praticados pela OCDE e pelos EUA. Calcadas em fórmulas matemáticas e em margens de lucro fixas para cada setor econômico, elas geralmente despertam críticas internacionais, mas não é certo que elas desrespeitam o princípio arm’s length e elas certamente não se pautam em critérios de destinação.
Há de se ver como a IRS se comportará sobre o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) pagos em decorrência de regras de transfer pricing brasileiras.
2.2 Não-residentes do país estrangeiro
Em relação a não-residentes do país estrangeiro, o tributo estrangeiro atende o requisito de atribuição se a receita bruta e os custos dela dedutíveis são atribuíveis, de acordo com princípios razoáveis, a atividades realizadas, a fonte situada ou a propriedade localizada (property situs) no país estrangeiro.
A atribuição baseada em atividades está presente quando o não-residente possui funções, ativos ou riscos localizados no país estrangeiro segundo parâmetros similares aos que atribuem determinados rendimentos de não-residentes a um comércio ou negócio (trade or business) nos EUA (effectively connected income, ou ECI). Tais parâmetros não podem levar em consideração a localização de consumidores, usuários ou qualquer outro critério baseado na destinação dos produtos ou serviços do não-residente.
A atribuição baseada em fonte ocorre quando a receita bruta possui fonte no país estrangeiro e as regras de fonte deste são razoavelmente similares às regras de fonte dos EUA[4]. Especificamente, as regras de fonte do país estrangeiro devem se conformar com os seguintes parâmetros:
- Serviços: a regra de fonte do país estrangeiro tem que estabelecer como fonte o local onde os serviços são prestados, segundo princípios razoáveis que não podem eleger o local onde se situe o destinatário dos serviços.
- Royalties: a regra de fonte do país estrangeiro tem que estabelecer como fonte o local de uso, ou de direito ao uso, da propriedade intangível que deu azo aos royalties.
- Venda de Bens: para a venda ou alienação de bens em geral, o requisito de atribuição deve ser feito com base em atividades ou no local de propriedade (property situs), e não com base em regras de fonte.
Importante notar que a atribuição baseada em fonte depende da conformidade da lei estrangeira (p. ex., a lei brasileira) ao critério de fonte eleito na lei americana, e não na particularidade de cada situação fática.
Assim, se, por exemplo, o país estrangeiro elege como fonte de serviços o local do tomador dos serviços e, na hipótese, o tomador reside no país estrangeiro e, por coincidência, os serviços foram prestados naquele mesmo país, o imposto estrangeiro não atende o critério de atribuição e não gera FTC para o não-residente. Da mesma forma, se a regra do país estrangeiro elege como fonte dos royalties o local do pagador (que se encontra no país estrangeiro) e, por coincidência, a licença que gera os royalties permite o uso da propriedade intelectual no país estrangeiro, o imposto estrangeiro também não atende o critério de atribuição e não gera FTC.
A atribuição baseada no local de propriedade (property situs) geralmente ocorre quando o bem imóvel vendido ou alienado (bem assim de pessoa jurídica proprietária de tal imóvel) situar-se no país estrangeiro. Em relação a outros bens, a atribuição baseada no local de propriedade ocorre quando tais bens formam parte de um negócio que constitua uma presença tributável no país estrangeiro, de acordo com regras similares às dos EUA.
3. Impactos no Brasil
Entre as principais mudanças trazidas pelo requisito de atribuição, destacam-se as aplicáveis aos não-residentes do Brasil e, nelas, o requisito de atribuição com base em fonte. Realmente, contribuintes americanos que são tributados no Brasil através dos lucros pagos por uma pessoa jurídica brasileira poderão justificar seu FTC com base no requisito de atribuição por atividades. Da mesma forma, americanos tributados no Brasil em razão da venda de bens imóveis ou quotas de empresa situados no Brasil poderão justificar seu FTC pelo requisito de atribuição por property situs.
Os principais pagamentos que empresas brasileiras fazem às suas matrizes nos EUA e que geram imposto de renda retido na fonte (IRRF) no Brasil para estes são juros, royalties e pagamentos por serviços[5]. Porque o requisito de atribuição com base em fonte requer que as regras de fonte brasileiras sejam substancialmente similares às regras de fonte dos EUA, passo a examiná-las de maneira geral.
Diferentemente dos EUA, o Brasil não possui um conjunto orgânico de regras de fonte[6]. O próprio conceito de fonte reparte-se entre fonte de produção (equivalente ao capital de onde brota a renda tributada, por isso também chamada fonte econômica ou fonte objetiva) e fonte de pagamento (ligada à pessoa que paga os rendimentos, por isso também chamada fonte financeira ou fonte subjetiva).
A lei brasileira não é clara a este respeito e a doutrina recorre aos verbos utilizados em seus principais trechos para lhes extrair os critérios de fonte eleitos e concluir que, como regra geral, a lei tributária brasileira exige a ocorrência de ambos para fazer incidir o IR na fonte. Alberto Xavier[7] bem explica a interpretação:
“O [atual art. 741] do [Regulamento do Imposto de Renda – RIR] declara que a renda e os proventos de qualquer natureza auferidos por residentes no exterior são tributáveis no Brasil apenas se ‘provenientes de fontes situadas no País’, consagrando assim o princípio da sua ‘tributabilidade limitada’ ( . . . ). Por sua vez, o [atual art. 744] do RIR dispõe que estão sujeitos à incidência do imposto os rendimentos, ganhos de capital e demais proventos pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos ‘por fonte situada no País’.
É importante sublinhar que, enquanto o [atual art. 741] utiliza a expressão ‘provenientes de fonte situadas no país’, o [atual art. 744] usa o termo ‘pagas . . . por fonte situada no Brasil’.
A ‘proveniência’ da fonte alude à fonte de produção, fonte econômica ou fonte objetiva, que é a origem da renda, ou seja, a atividade, bem ou direito de que resulta; o ‘pagamento’ pela fonte alude à fonte de pagamento, fonte financeira ou fonte subjetiva, que é a pessoa que efetua o pagamento da renda ao seu titular.
A lei exigiu, pois, que estejam localizadas no Brasil cumulativamente a fonte de produção e a fonte de pagamento. A fonte de produção, porque é ela que estabelece a real conexão econômica de renda com o território do país tributante; a fonte de pagamento, pois para a natureza deste imposto, retido exclusivamente na fonte, é essencial que no país seja residente a pessoa que paga o rendimento tributável e que será considerada fonte pagadora (…).”
Contudo, essa regra geral não decorre de literal disposição da lei brasileira e, além disso, não é absoluta e comporta exceções.
É, portanto, necessário avaliar cada regra de fonte brasileira à luz da transação concreta e do conjunto normativo aplicável. Ao mesmo tempo em que a lei americana diz que o critério de fonte eleito pela lei brasileira independe de particularidades de cada transação, ela também diz que é a lei brasileira que define o caráter da remuneração paga (p.ex., se royalties, juros ou contraprestação por serviços) ao exterior.
Outro aspecto relevante diz respeito à possibilidade de contribuintes brasileiros usarem o crédito do income tax pago nos EUA contra o IR a ser pago no Brasil.
Brasil e EUA não possuem um tratado para evitar a dupla tributação, mas a Receita Federal brasileira, com base na reciprocidade de tratamento vigente até recentemente, sempre aceitou o crédito do income tax americano contra o IR brasileiro. Ou seja, porque os EUA reconheciam FTC do IR pago no Brasil para compensação com o income tax, o Brasil reconhecia o crédito do income tax pago nos EUA para compensação com o IR brasileiro.
Todavia, com a nova regulamentação americana, que restringe o reconhecimento de FTC sobre tributos estrangeiros, a reciprocidade de tratamento pode ser afetada e o creditamento do imposto americano contra o brasileiro, prejudicado. Se isso ocorrer, poderá haver sério impacto para contribuintes brasileiros, sejam eles pessoas jurídicas com negócios e atividades nos EUA, sejam eles pessoas físicas que investem no mercado financeiro e de capitais americano, ou mesmo aqueles com bens (imóveis, veículos etc.) na terra do Tio Sam.
4. Vigência da nova regulamentação
As novas regras produzem efeitos para anos fiscais que se iniciem a partir de 28/12/2021. Para todo o exercício de 2022, portanto, a nova regulamentação americana já está valendo.
Dessa forma, é importante reavaliar as transações que empresas brasileiras têm pactuadas com suas matrizes ou partes relacionadas nos EUA para conferir se elas atendem ao novo requisito de atribuição e, na hipótese de não atenderem, remodelar ou mesmo interromper essas transações para evitar que a nova bazuca americana ocasione a perda de impostos para seus contribuintes no Brasil.
J. Rubens Scharlack é advogado no Brasil e na Flórida, sócio fundador de Scharlack Advogados e Scharlack PLLC.
[1] A lei americana também entende atender o requisito da realização o tributo que incide sobre fenômeno que indique a futura ocorrência de um evento de realização (um pre-realization event, como p.ex. o processamento, a transferência ou a exportação de um bem pronto para ser comercializado).
[2] A lei admite que a receita bruta seja presumida, mas apenas se a presunção não superar o valor da receita bruta real.
[3] A lei admite a dedução de valores alternativos (como p.ex. uma allowance), porém só se o montante destes se revelar igual ou superior (nunca inferior) ao valor dos custos e despesas realmente incorridos pelo contribuinte.
[4] O caráter da receita é determinado pela lei do país estrangeiro.
[5] Dividendos são isentos de IR e por isso não geram FTC para o sócio americano.
[6] Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, Editora Forense, 2007, p. 305.
[7] Id., p. 510. Vide também Luís Eduardo Shoueri, Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Fonte e Universalidade, In Princípios e Limites da Tributação, Editora Quartier Latin, 2005, p. 344; Gerd Willi Rothmann, Tributação dos Ganhos de Capital nas Relações Internacionais: Sujeito Passivo Fazendário, Judiciário ou Legal, Revista de Direito Tributário Internacional n. 8, Editora Quartier Latin, 2008, p. 57.