Por David Roberto R. Soares da Silva
Até 2021, um dos temas mais relevantes envolvendo o ITCMD girava em torno da controvérsia sobre heranças e doações envolvendo bens no exterior e sua tributação, ou não, pelo ITCMD. As legislações estaduais eram quase unânimes em exigir o imposto mesmo quando o bem doado ou herdado estivesse no exterior e pertencesse a um residente no exterior.
Em São Paulo, o Tribunal de Justiça do Estado (TJSP) pacificara o tema ainda em 2011 no sentido de que, sem a prévia edição de lei complementar nacional regulando a matéria, a lei paulista não poderia exigir o ITCMD sobre doações e herança recebidas do exterior. O tribunal entendeu que essa questão deveria ser de competência exclusiva do Congresso Nacional, mediante edição de lei complementar, não sendo possível ao estado se sub-rogar nessa competência.
Passados dez anos da jurisprudência do TJSP, o tema foi finalmente julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), numa decisão controversa, que entendeu pela inconstitucionalidade da cobrança do imposto estadual. A polêmica em torno do julgado do STF se deu em razão da modulação dos efeitos da sua decisão, que aplicou regras distintas para situações similares, mesmo tendo julgado inconstitucional a cobrança do ITCMD sobre heranças e doações havidas do exterior.
A maioria dos integrantes do STF decidiu modular os efeitos da decisão para que passasse a produzir efeitos somente a partir da publicação do acórdão (20 de abril de 2021), exceto quanto às ações judiciais já em andamento, para as quais valeria a declaração de inconstitucionalidade independentemente da data de ocorrência do fato gerador do imposto.
Em outras palavras, o ITCMD sobre heranças e doações do exterior não pode ser cobrado, em qualquer situação, com relação a fatos geradores ocorridos a partir de 20 de abril de 2021, ao menos até que o Congresso Nacional edite lei complementar nesse sentindo e os estados, depois da publicação da lei complementar, editem leis estaduais correspondentes.
Para os fatos geradores ocorridos antes de 20 de abril de 2021, o STF criou uma verdadeira colcha de retalhos quanto aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que pode ser ilustrada da seguinte forma:
Situação | Efeitos da decisão do STF |
Contribuinte pagou o ITCMD | O imposto não poderá ser restituído |
Contribuinte não pagou o ITCMD e não questionou o imposto judicialmente | O estado poderá efetuar a cobrança dentro do prazo prescricional de cinco anos a contar da ocorrência do fato gerador |
Contribuinte não pagou o ITCMD, mas questionou o imposto em ação judicial | O imposto será considerado inconstitucional com ganho de causa ao contribuinte |
Embora favorável ao contribuinte, a decisão do STF é incoerente. Se, por um lado, reconhece a inconstitucionalidade da cobrança do imposto por falta de lei complementar, por outro, a modulação de efeitos valida pagamentos do ITCMD feitos pelos contribuintes, vedando seu ressarcimento, assim como autoriza a cobrança do imposto não pago, cujo fato gerador ocorreu até 20 de abril de 2021.
Depois desta explicação preliminar, poder-se-ia pensar que o tema está definitivamente resolvido e que, embora confusas, as regras estabelecidas do STF são relativamente claras quanto a sua aplicação.
No entanto, não é isso que se tem visto no estado de São Paulo, que agora utiliza subterfúgio ilegal para tentar cobrar contribuintes que questionaram a incidência do ITCMD relativo a fatos geradores ocorridos antes da decisão do STF. Pelos termos da modulação dos efeitos da decisão do STF, esses contribuintes teriam ganho de causa em suas ações, não sendo devido qualquer imposto.
Na totalidade dos casos em que tive a oportunidade de atuar (para fatos geradores pré-20 de abril de 2021), a regra tem sido essa mesma: as Cortes inferiores adotam o entendimento do STF, dão ganho de causa do contribuinte e o caso se encerra.
Impossibilitada de cobrar judicialmente o ITCMD em razão da decisão do STF, a Fazenda do Estado de São Paulo tem utilizado os Cartórios de Protesto de todo o estado como forma de pressionar os contribuintes a pagarem o valor do ITCMD sobre doações e heranças do exterior.
Os Cartórios de Protesto não fazem parte da estrutura do Poder Judiciário e as anotações de protesto não exigem análise prévia – pelos cartórios – da legalidade ou legitimidade da cobrança. Recebendo as informações do fisco estadual, esses cartórios têm enviado intimações de cobrança que, na prática, ameaçando contribuintes com protesto se a dívida não for quitada em poucos dias, ainda que o contribuinte já tenha decisão final favorável transitada em julgado. O fundamento legal para o protesto de “dívida” pública foi dado pela Lei nº 12.767/2012 que incluiu entre os títulos protestáveis as “certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.”
De nada adianta se dirigir aos cartórios munido de cópias dos processos e das decisões judiciais, pois essa análise está fora das responsabilidades dessas entidades. Além disso, a única relação que se consegue fazer entre o protesto e a ação judicial é pelo valor do ITCMD, pois as informações contidas nas intimações de protesto não dizem que a origem da suposta dívida é o ITCMD discutido judicialmente.
A única solução é a propositura de medida judicial de sustação de protesto, seguida de ação principal para o cancelamento da dívida em razão da decisão judicial favorável baseada no entendimento do STF.
Caso o protesto não seja sustado, a inadimplência da dívida será tornada pública com consequências nefastas para a obtenção de crédito e financiamento pelo contribuinte, sem contar as dores de cabeça na na venda de imóveis e outros bens de valor.
Contribuintes com ganho de causa em ações de ITCMD sobre heranças e doações do exterior devem ficar atentos às intimações enviadas por cartórios de protesto e manter em boa guarda dos documentos que demonstrem o seu ganho de causa. Isso porque o prazo para pagamento ou sustação do protesto é de três dias úteis, nos termos do que determina o art. 12 da Lei nº 9.492/1997.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.