Por David Roberto R. Soares da Silva e Artur Francisco da Silva
O sistema educacional brasileiro é norteado pela regra da progressividade escolar, não contemplando regra de ‘regressão’, ainda que para o bem-estar do menor. Essa situação pode ser extremamente prejudicial às crianças portadoras de necessidades especiais, trazendo angústia e preocupação para a família e para a comunidade escolar.
Em caso recente, nos deparamos com a situação de uma família, cuja filha, de 15 anos e portadora da síndrome de Down, estava matriculada no 9º ano do ensino fundamental. A situação era delicada, pois a menina possuía muitas dificuldades em leitura, redação e cálculos, pelas limitações cognitivas causadas pela disfunção cerebral.
Com sérias dificuldades de aprendizado e relação interpessoal, a adolescente buscou guarida em outra sala de aula que não a sua. E assim, espontaneamente, foi se alocar no 7º ano da mesma escola, em que havia outras adolescentes portadoras de Síndrome de Down, sendo acolhida com carinho e compreensão. A escola, por liberalidade, aquiesceu à ‘regressão’ informal, embora a adolescente mantivesse sua matrícula no 9º ano.
O mais angustiante para a família era o fato de que, em 2023, a adolescente deveria matriculada no 1º ano do ensino médio e perderia o contato com a classe que cursava de maneira informal. A família já havia sido informada pela escola que não seria possível matricular a adolescente no 7º ano em 2022.
Isso porque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação veda o retrocesso do aluno, pois é norteada pela regra da progressividade. No máximo, pode se repetir o ano, mas jamais o regresso para anos já cursados. O que fazer?
Tínhamos em mente que a educação é direito fundamental, e que a dignidade da pessoa deve prevalecer frente as ações do Estado, ainda que inclusivas, sempre com respeito à legislação. E assim fizemos.
O Art. 208 da Constituição Federal trata dos deveres estatais em relação ao ensino, e traz os seguintes fundamentos: (a) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; e (b) acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.
Por outro lado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência tem como um dos nortes o desenvolvimento e a inclusão social dos portadores de alguma deficiência motora ou cognitiva.
Diz seu Art. 1º: É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Das duas normas legais, extrai-se dois importantes primados: capacidade e igualdade. Isso porque, para que se atinja condições de igualdade, é necessário se aferir como se mensura a capacidade do indivíduo. São as individualidades de cada que devem ser respeitadas, para que se atinja uma isonomia material.
Ou seja, tratar igual os iguais, e os desiguais na medida de suas desigualdades. Por mais inclusivo que seja o Estatuto da Pessoa com Deficiência, seria justo inserir o indivíduo em atividade, cuja limitação está além de suas vontades, imposta por fatores biológicos que fogem à sua determinação?
Sendo negativa a resposta, é preciso enxergar a situação de maneira individualizada. Portadores de deficiências não são vetores de caridades, e devem ser parte da sociedade, considerando suas características de diferenciação. Não aplicar esse raciocínio leva a situações de uma pseudo igualdade, onde todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer gênero.
Voltando ao caso tratado, a adolescente, matriculada formalmente no 9º ano do Ensino Fundamental, não se sentia como dele sendo parte. Seus colegas, por desinformação, não compreendiam as dificuldades causadas pela Síndrome de Down, e consequentemente, não a consideravam nas atividades sociais. E naturalmente, a adolescente buscou guarida em outro seio social que não o atual, especificamente, no 7º ano, onde passou a se desenvolver com muito mais qualidade e bem-estar.
E mesmo com a desenvoltura em constante grau evolutivo, o equilíbrio emocional muito mais estável, e as avaliações por provas mostrarem uma melhoria significativa, a adolescente não pode retornar ao ano já cursado. No máximo, o sistema de ensino admite a retenção, mas a regressão, não.
A solução foi ingressar com medida judicial, requerendo uma liminar que autorizasse a adolescente sair do 9º ano, e que fosse matriculada no 7º ano do ensino fundamental ainda no ano de 2022. E foi exitosa nossa resposta, com a decisão pouco tempo depois em nossas mãos.
O estado, por vezes, cria situações que, apesar de embutirem uma boa dose de princípios e bons costumes, não reconhecem a particularidade do indivíduo. E é até compreensível, frente a uma sociedade tão plural quanto a nossa; é tarefa humanamente impossível conceber todas as conjecturas capazes de gerar um caso de distinção.
Por mais que o Estatuto de Proteção à Pessoa com Deficiência seja inclusivo, fomentador de políticas participativas e direitos para os que nela se inserem, em razão da multiplicidade infinita de conjecturas sociais, não poderia contemplar que uma pessoa deficiente não quisesse obter algum direito assegurado pela norma. Entre os direitos assegurados, preferiu a indivídua a liberdade, dignificando sua pessoa e tornando-a ainda mais cidadã.
A sociedade muito evoluiu nos últimos anos a respeito dos direitos individuais e coletivos, sobretudo em relação aos deficientes. Para se ter uma dimensão, na Grécia antiga, com sua força militar fortificada em razão de grandes guerras, sacrificava aqueles que nascessem com alguma deformidade ou capacidade cognitiva deficitária, pois não poderia fazer parte do seu grande exército. Já bem mais recente, estima-se que o regime nazista tenha eliminado milhares de pessoas deficientes, na defesa da concepção da raça ariana, ou eugenia.
Desses tempos nefastos muitas coisas mudaram, e a deficiência deixou de ser um problema individual, passando a ser cuidada como uma questão de saúde pública. A sociedade deveria se adaptar às necessidades geradas pelos deficientes, e não o contrário.
Mas foi somente em 2006 que foi elaborada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, e ainda temos um longo caminho a ser percorrido até que seus princípios sejam plenamente incorporados à vida cotidiana. Casos como o que o tratamos aqui nos trazem a sensação de que mais do que regras escritas, é preciso de mudança de consciência, e considerar o portador de deficiência como um indivíduo, detentor de suas próprias vontades e desejos.
O respeito à dignidade da pessoa humana é imensurável em suas mais variadas formas, mas como vetor de orientação, deve priorizar um único sentimento: a felicidade, e esse valor tão caro não pode ser concebido somente em letras postas em dispositivos legais. Deve, isto sim, ser operacionalizado em prol daquele que dele necessita com mais carência, que proporcionalmente vem ao mundo em desvantagem se comparado com a esmagadora maioria – em termo populacional – no mais amplo sentido de cooperação entre as pessoas.
Aos pais e às famílias em situação similar fica a mensagem de esperança de que há solução para adequar o enquadramento escolar de seus filhos às suas reais necessidades e capacidades. Cabe a esses pais, no entanto, tomar as rédeas da situação e procurar a proteção judicial necessária em razão das falhas de nosso sistema que impedem o enquadramento voluntário de seus filhos ao ano escolar adequado.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
Artur Francisco da Silva é advogado em São Paulo e coautor do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, publicado pela Editora B18.
É triste ver que nossa sociedade ainda não é suficientemente inclusive com nossas crianças especiais. Mas, ainda há esperança graças a pessoas de enorme coração.
Que artigo maravilhoso! Obrigado aos autores.
Gratidão pelo artigo! Parabéns.