Por Bruno Lima e Moura de Souza
Em junho passado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara de Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 4758/2020, que introduz no ordenamento jurídico brasileiro o regime geral da fidúcia, que pode ser de grande valia para os negócios e as famílias.
Mas o que vem a ser o instituto da fidúcia?
Os primeiros registros do instituto jurídico da fidúcia remontam ao direito romano, e consistia na transmissão da propriedade de um bem infungível (aquele que não pode ser substituído por outro de mesma espécie, qualidade e quantidade[1]) ao fiduciário e este último assumia o compromisso de restituir a propriedade ao fiduciante uma vez alcançado os objetivos estabelecidos pelas partes.
Séculos depois, no período das Cruzadas, surge na Inglaterra o instituto do Trust, que muito se assemelha à fidúcia. Quando os proprietários de ativos partiam nas expedições da Cruzadas, das quais não sabiam se iriam retornar com vida, confiavam seus ativos à Igreja para que os administrasse em sua ausência e dessem a devida destinação caso não retornassem das missões para reclamar seus bens.
Com o passar dos anos o instituto do Trust se tornou figura frequente e bem difundida nos países que adotam o common law, a exemplo da já mencionada Inglaterra, dos Estados Unidos e demais países colonizados pelo Reino Unido.
O Trust é uma relação jurídica estabelecidas entre três parte:
- Settlor: aquele que contribui com ativos para o trust;
- Trustee: o indivíduo ou empresa nomeada pelo Settlor para administrar os ativos do Trust e assegurar que o acesso a esses bens e direitos ocorram de acordo com suas vontades, exteriorizada no contrato de constituição do Trust; e
- Beneficiário(s): aquele que se beneficiará da propriedade e rendimentos desses ativos, de acordo com a vontade do Settlor.
No instituto da fidúcia, as partes recebem outras denominações, sendo elas
- Fiduciante, equivalente ao Settlor;
- Fiduciário, equivalente ao Trustee; e
- Beneficiários, podendo ser pessoas, entidades e inclusive o próprio fiduciante e até o fiduciário[2].
Vejamos abaixo de forma ilustrada:
Passemos a analisar os principais pontos do instituto da fidúcia, regulamentados pelo PL 4758/2020.
A proposta aprovada na CCJ da Câmara prevê que os bens ou direitos objetos da fidúcia e seus frutos, com as correspondentes obrigações, constituem patrimônio autônomo, afetado à finalidade estabelecida no ato constitutivo, e só respondem pelas dívidas e obrigações a eles vinculados, vedado seu redirecionamento ao patrimônio próprio do fiduciário, do beneficiário e do fiduciante, salvo nos casos de fraude[3].
Ou seja, caso se verifique que o instituto da fidúcia foi utilizado de forma fraudulenta, para prejudicar um credor por exemplo, o patrimônio objeto da fidúcia responderá por dívidas e obrigações.
Além disso, outro ponto de atenção é o de que o fiduciário deverá encarregar-se para que os bens e direitos objeto da fidúcia, bem como seus frutos, não se comuniquem, nem se confundam, com os bens e direitos do seu patrimônio próprio ou de outros patrimônios sob sua administração, somente podendo deles dispor em conformidade com as condições e para os fins estabelecidos em lei ou previstos no ato constitutivo da fidúcia[4].
Um dos questionamentos que muitos clientes fazem em relação ao instituto do Trust, e consequentemente da Fidúcia, é sobre a responsabilização do Trustee ou, no caso do Brasil, do Fiduciário.
O PL 4758/2020 prevê a responsabilização do Fiduciário ao estabelecer que o este responderá pelos prejuízos causados por negligência ou administração temerária e, havendo mais de um fiduciário, todos responderão solidariamente[5].
O PL 4758/2020 prevê, ainda, que o Fiduciário cumpra uma série de deveres para que possa estar de acordo com a legislação, dentre elas destacamos a necessidade de o Fiduciário prestar contas de sua gestão, na periodicidade prevista na lei ou no ato constitutivo da fidúcia[6]. Importante destacar que caso o Fiduciário frustre a finalidade da fidúcia por dolo ou culpa, o Fiduciante ou o beneficiário poderá destituí-lo de suas funções[7].
Não restam dúvidas que o instituto da fidúcia, previsto no PL 4758/2020, será muito útil na realização de planejamento sucessório no Brasil, de modo que, uma vez aprovado em caráter definitivo, a referida legislação regulamentará, dará clareza e segurança jurídica para as operações e contratos de fidúcia no Brasil.
Não obstante, perdeu-se a oportunidade de tratar no PL sobre os aspectos tributários do contrato de fidúcia no Brasil. Isso, sem dúvida, irá afetar a sua rápida implementação no país, pois a incerteza quanto ao tratamento tributário adequado inibirá muitos possíveis fiduciários de oferecerem serviços a clientes com receio de sua responsabilização fiscal.
O projeto ainda deverá passar por um longo caminho no Legislativo antes de se tornar realidade e ainda há esperança de que a questão tributária seja endereçada durante o processo.
Bruno Lima e Moura de Souza é advogado pós-graduado em direito tributário e integrante do departamento de tax e wealth planning do BLS Advogados em São Paulo.
[1] Embora o Código Civil não traga definição do que seria bem infungível, o Art. 85 do Código Civil estabelece o que seria bem fungível, de modo que podemos considerar o bem infungível como sendo o aposto ao estabelecido no Art. 85 do Código Civil.
[2] Art. 2º, parágrafo único do PL 4758/2020
[3] Art. 4º, §3º do PL 4758/2020
[4] Art. 6º, §1º do PL 4758/2020
[5] Art. 7º, §4º do PL 4758/2020
[6] Art. 8º, inciso V do PL 4758/2020
[7] Art. 9º, inciso III do PL 4758/2020
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