A pergunta acima não é mero exercício de retórica, muito menos fundada em teorias complexas. Expressa, na realidade, assunto que está inserido no nosso Código Civil, mas conhecido e divulgado por poucos. Estamos falando da prole eventual.
Imaginemos o seguinte: Heitor é um senhor de meia idade, casado, pai de duas mulheres já adultas, ambas também casadas. Uma delas, Raquel, já agraciou o pai com a vinda de um neto – até porque, diz o ditado, quem é avô é pai duas vezes – enquanto Mirtes prefere não ter filhos. Heitor, ao começar a estruturar seu planejamento patrimonial, pensando não só na segurança de sua família, mas também em sua felicidade, promete a Mirtes um imóvel ao futuro herdeiro da filha, caso ela mude ideia.
A proposta pode ser vista facilmente como uma doação atrelada a uma condição, no entanto, o detalhe é que Heitor previu o acordo em testamento. Ou seja, como um dos atos de última vontade, queria ele dispor de parcela de seu patrimônio, assim que falecesse, a um herdeiro que ainda não nasceu, e nem se sabe ao certo se existirá.
Primeiramente, a questão é conhecida no meio jurídico como prole eventual, e vem tratada no Art. 1.799, do Código Civil, que dispõe:
“Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”.
Portanto, a lei prevê a possibilidade de o testador deixar parte disponível dos seus bens a herdeiro ainda inexistente, que pode vir a herdar ou não. É obrigação jurídica sujeita a condição, a um evento futuro e incerto.
Então, tem-se o seguinte quadro: Heitor, falecendo, cumprindo com todas as formalidades do instrumento, realiza seu testamento, dispondo parte de seu patrimônio disponível ao eventual filho de Mirtes, seu neto. Mirtes, por sua vez, revê seu antigo posicionamento, e decide ter um filho.
Mas quanto tempo será necessário aguardar até que ocorra a transmissão do imóvel ao futuro herdeiro? E se ele não for concebido? Pode ser um filho adotado?
Caso o neto de Heitor, filho de Mirtes, já tenha nascido quando do falecimento do avô, a transmissão ocorre sem maiores problemas no curso do inventário de Heitor.
Mas, se ainda não nascido o neto, a lei concede um prazo de 2 anos, desde a abertura da sucessão – falecimento de Heitor – para que a transmissão da herança se concretize.
Mas, poderia Heitor conceder um prazo maior para a transmissão ocorra? Cremos que sim, pois a autonomia privada, juntamente com a prevalência do desejo do testador, são fundamentos para que tal disposição assim ocorra.
Voltando ao exemplo fático, com o falecimento de Heitor, tem-se a transmissão de bens aos herdeiros, e Mirtes tem dois anos para que conceba seu filho, ficando ela e o marido responsáveis pela administração do imóvel transmitido. Aqui aplica-se o instituto da curatela para proteção de direitos de pessoa futura, salvo disposição contrária disposta no testamento, que pode nomear um terceiro para que providencie os cuidados necessários à manutenção do imóvel.
Mas Mirtes têm dificuldades de engravidar, e após uma série de exames médicos, faz-se a diagnose de infertilidade. Resolve ela, então, adotar uma criança, e com isso, concretizar a vontade do falecido pai.
Sua irmã, Raquel, não concordando com a adoção, alega que a sucessão só é efetivada em casos tais, quando o herdeiro nascer com vida. Ela se baseia no Art. 1.800 do Código Civil, que fiz
“Art. 1.800. Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador”.
No seu (Raquel) entendimento, o herdeiro deve vir ao mundo por meio de concepção biológica originada no ventre da própria irmã, pois seria esse o desejo do falecido pai. Com isso, em sua opinião, o imóvel deve voltar à partilha de bens, eis que a vida exigida pelo artigo acima já tinha se originado, no caso de uma adoção de filho.
Mirtes, então, em tratativa com a irmã, mostra a ela o Art. 227, § 6º da Constituição Federal, e explica que a discriminação entre proles distintas é violação do princípio da igualdade entre filhos.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(…) § 6º. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
De comum acordo, as irmãs selam o desgaste, e finalmente a transmissão do bem se efetiva ao filho adotivo.
Por outro lado, poderia Heitor inserir uma cláusula no testamento, estipulando que a concepção fosse biológica em relação à Mirtes? Perfeitamente. No entanto, o mesmo Art. 227, § 6º, serviria de argumento contrário aos desígnios do pai, e ao nosso ver, plenamente aplicável.
Claro que todo o exemplo citado é obra de ficção, mas poderia ser totalmente factível.
A prole eventual é mais um dos institutos dos direitos sucessórios, e plenamente aplicável ao planejamento patrimonial.
Mas como o testamento é um assunto tratado com muito receio por maioria ampla da população, acaba por ser pouco informado por aqueles que se interessam no tema. Para o bem e para o mal, a morte é uma das certezas da vida, e agir proporcionando o estado de bem-estar àqueles que estão por vir, é garantia de uma existência repleta de valores.
Artur Francisco da Silva é advogado especialista em direito tributário e contencioso em São Paulo.
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