Três irmãos adultos foram reconhecidos pelo Judiciário como filhos da madrasta, mesmo após a sua morte. A decisão que envolve o reconhecimento da filiação socioafetiva, tema muito recorrente nos dias de hoje, foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso.
No caso, os três irmãos ainda eram crianças quando os pais se separaram e o pai se casou novamente com outra mulher. Dois anos depois, a mãe biológica faleceu, fato esse que acabou estreitando o vínculo afetivo entre a madrasta e os enteados.
De acordo com as provas do processo, a madrasta não apenas ajudou a criar as crianças – que contavam 8, 6 e 3 anos de idade na época –, como também manteve com eles, relacionamento afetuoso, chamando-os de filhos e sendo por eles chamada de mãe.
Após a morte da madrasta, sua irmã pleiteou toda a herança. Os enteados, então, foram ao Judiciário para reconhecer o vínculo materno socioafetivo. O caso foi analisado pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo e, por unanimidade, os desembargadores mantiveram a sentença que garantiu a maternidade socioafetiva concomitantemente com direito à herança pelos enteados.
A irmã biológica da madrasta recorreu ao STJ, mas o Tribunal negou provimento ao recurso e manteve o reconhecimento do vínculo materno socioafetivo.
De acordo com a decisão, os três enteados terão duas mães nas suas respectivas certidões de nascimento: a biológica, que morreu quando eram crianças, e a madrasta.
Nesse segmento, é oportuno mencionarmos que a filiação socioafetiva nada mais é do que o reconhecimento jurídico da maternidade ou paternidade com base exclusivamente no afeto, sem que haja vínculo de sangue, ou mesmo jurídico (adoção formal) entre as pessoas. Em outras palavras, é quando um homem ou uma mulher cria um filho como se seu fosse, mesmo não sendo o pai ou a mãe biológica da criança ou do adolescente.
A referida decisão cita outro precedente do STJ sobre o tema, senão vejamos:
“A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral da tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança”.
(Recurso Especial nº 450.566, julgamento em 03.05.2011).
Sobre esse tema, o STF pacificou, em 2016, o conflito que circundava a questão da preponderância da paternidade e maternidade socioafetiva em relação à biológica. Segundo o entendimento da Corte, não há hierarquia entre a paternidade biológica ou socioafetiva, senão vejamos:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO A BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO – POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES.
(…) 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.
(…) 16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (STF, Recurso Extraordinário nº 898060, julgamento em 21.09.2016).
Assim, como não há distinção entre o filho biológico e o socioafetivo, uma vez declarada a parentalidade socioafetiva, ambos terão os mesmos direitos em relação à herança, vez que o enteado se torna herdeiro legítimo, tal como o filho biológico.
Por fim, trata-se de um entendimento jurisprudencial importante, uma vez que a maioria das pessoas desconhece tal tema, o que pode causar problemas e desconfortos no futuro.
Nesse viés, em casos de namoro ou união estável em que uma ou ambas as partes possuam filhos de relacionamento anteriores, importante avaliar a conveniência ou necessidade de incluir cláusulas nos respectivos contratos acerca de possíveis intenções (ou sua ausência) no tocante à paternidade ou maternidade socioafetiva. A ausência desse tipo de previsão pode resultar, futuramente, em eventual pleito de filiação socioafetiva com consequências patrimoniais relevantes.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do BLS Advogados, em São Paulo.
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