Tradicionalmente o Direito Brasileiro adota a teoria do mors omnia solvit, ou seja, a morte a tudo resolve. Nesse sentido, a nossa tradição jurisprudencial sempre foi no sentido de que, iniciada uma ação de divórcio e ocorrendo a morte de um dos cônjuges durante o processo, esse deveria ser extinto por perda do objeto, tendo em vista que o cônjuge sobrevivente passava a condição de viuvez, uma outra condição jurídica.
Todavia, raramente se observava o fato de que os efeitos patrimoniais das duas condições jurídicas são muito diversos, não apenas em relação ao patrimônio do de cujus, mas também em relação aos efeitos previdenciários, e, em alguns casos, em suas relações pessoais.
Isso vem mudando nos últimos anos com o surgimento de decisões judiciais homologando ou confirmando divórcios post mortem emlinha com as atuais regras de Direito Civil.
A retomada da discussão
Durante muito tempo, a jurisprudência pátria consolidou o entendimento da inviabilidade de divórcio post mortem. Mas, em 2018, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) viria a modificar o cenário jurídico em relação a esse tema. A 7ª Câmara Cível desta Corte se pronunciou nos seguintes termos:
“A controvérsia reside justamente em dizer qual desses motivos ocorreu primeiro, se prevalece ou não a manifestação de vontade das partes de se divorciarem, ainda sem a chancela judicial. E tal importa porque a dissolução do casamento por uma ou outra causa surte efeitos jurídicos próprios e distintos, sendo a morte do cônjuge, por exemplo, fato gerador de direitos sucessórios e previdenciários, e o divórcio, de direitos à partilha de bens e pensão alimentícia” (TJMG, Ap. 1.0000.17.071266-5/001, julgamento em 29.05.2018).
Vale observar, aqui, dois pontos em destaque: primeiro a menção direta a autonomia da vontade das partes; e, segundo, os diferentes efeitos jurídicos de cada estado civil. A partir desse julgado, o tema passou a ser mais discutido dada a sua relevância para o direito de família e sucessório, tendo diversas outras decisões no mesmo sentido surgido nas cortes do país.
A viabilidade jurídica do divórcio post mortem
A grande divergência no tema se dá em razão do fato que, muitos juristas, entendem que essa possibilidade não se encontra albergada pelo nosso ordenamento jurídico, o que, no entanto, não procede. Desde há muito tempo o direito pátrio antevia a possibilidade jurídica do pedido de homologação de divórcio post mortem, mas devido a uma série de diversas circunstâncias jurídicas e culturais não era considerada possível.
Iniciemos pela autonomia da vontade citada na decisão. O Código Civil de 2002, consagrou entre seus princípios o da autonomia da vontade. Apesar de mais vinculada ao direito contratual, esse princípio jurídico se aplica a outras áreas do direito, em especial no próprio Direito de Família e Direito de Sucessões. Podemos tomar como exemplo o casamento em que os nubentes devem expressar, em cerimônia pública, a aceitação um do outro. Qualquer fato que turve a autonomia da decisão anula todo ato jurídico.
Outro exemplo claro é o testamento, cuja aferição da capacidade jurídica para testar é ato indispensável para a validade jurídica do documento, tendo em vista ser expressão da vontade do testador. Caso desejem se apoiar na lei, fica mais simples, pois o art. 1514 do Código Civil prevê: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”. Em outras palavras, sem manifestação da vontade não há casamento.
Não obstante este fato, tanto a família quanto o casamento possuem status constitucional e sua proteção recebe a devida proteção pela nossa Carta Magna. Porém, a EC 66/2010 eleva o direito ao divórcio a nível constitucional, e, ao fazer isso, o mesmo se torna direito potestativo e incondicional dos cônjuges, exceto sua própria vontade. Além disso, o art. 200 de nosso CPC prevê que: “os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais”.
A inicial de divórcio consiste, nos termos da lei, em manifestação unilateral de vontade e, portanto, deve produzir de imediato na constituição dos direitos processuais. Este também é um direito potestativo do impetrante da ação. Assim sendo, ao ser exercido, salvo nulidade absoluta, deve ser respeitado. Temos ainda o fato de que, tendo sido feito o ato processual com todas as formalidades exigidas, esse se constitui em ato jurídico perfeito, sendo revestido de status constitucional, assim como é atingido pelo efeito da preclusão se constituindo em coisa julgada formal.
Outro importante elemento trazido pela jurisprudência foi o componente subjetivo que fundamenta a ação de divórcio: a ruptura do afeto. Nesse sentido decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP):
“Princípio da ruptura do afeto. Direito cujo exercício somente depende da manifestação de vontade de qualquer interessado. Possibilidade de decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Precedentes. Ação procedente. Recurso provido” (TJSP, AC 1032535-74.2020.8.26.0224, julgamento em 28.07.2021).
Desta forma, fica claro que existem diversos fundamentos jurídicos a garantir a possibilidade do divórcio post mortem em nosso ordenamento jurídico. Por óbvio, que existem nuances a serem exploradas, como os legitimados a propor o andamento e homologação do divórcio, tendo em vista essa ação ser exclusiva dos cônjuges.
Neste caso em especial, apenas o espólio é legitimado a exigir a continuidade da ação de divórcio. Da mesma forma, havendo bens a partilhar, essa partilha deve ser feita antes da partilha dos bens do espólio no processo de inventário, pois o cônjuge sobrevivente perde a condição de herdeiro quando o divórcio for decretado. Além disso, temos os efeitos previdenciários, pois em muitos casos extingue o direito a pensão e outros benefícios por parte de cônjuge sobrevivente.
Conclusão
Resta demonstrado que o divórcio post mortem possui sustentação legal em nosso ordenamento jurídico, assim como atende a diversos princípios de nosso direito privado. Além disso, ele é moralmente sólido, pois caso seja concedido em atendimento ao solicitado pelo falecido, será respeitada a sua vontade manifesta, algo já existente, inclusive, em nosso direito sucessório.
Se, em sentido contrário, houver sido proposto pelo cônjuge sobrevivente e este, após a morte do outro, desiste do divórcio me parece uma quebra do dever de lealdade previsto no art. 1566, inciso I [fidelidade recíproca], III [mútua assistência], e, V [respeito e consideração mútuos]. Sem considerar o fato que, ao desistir do divórcio após a morte da outra parte, o cônjuge sobrevivente viola a boa-fé objetiva que determina que as partes possuem o dever de agir com base em valores éticos e morais da sociedade.
É sabido que estamos na era da vulgarização do matrimônio, afinal hoje é mais complexo casar-se do que divorciar. Ao reconhecer a possibilidade do divórcio post mortem o Judiciário fortalece a importância do matrimônio enquanto instituição e fortalece a autonomia da vontade nas relações jurídicas em todos os aspectos do direito privado.
Sandro Schmitz dos Santos é consultor de investimentos, analista e consultor econômico, doutorando em Economia [SMC/Genebra] e sócio-fundador Austral Consultoria & Investimentos.
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