Geralmente, quando se pensa em herança, vem à mente a ideia do recebimento de bens pelos quais não tivemos participação ativa – casas, móveis, joias, carros, valores depositados em conta corrente, são típicos exemplos desse evento. Mas existe outra possibilidade: de “herança” de dívidas. Já pensou nisso?
O caso a seguir mostra o que ocorre quando ao invés de ativos, o falecido ente deixa dívidas ao herdeiro.
Certo dia, Álvaro recebe a visita de um oficial de justiça, citando-o de uma execução por dívida contraída pelo seu falecido pai, Heitor. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, aceita os termos levados à sua ciência, e questiona ao meirinho qual o valor cobrado: R$ 500.000,00.
Fazendo uma reflexão sobre a saúde financeira pregressa do seu pai, lembrou que as dívidas assolavam suas contas, tanto que em vários momentos o ajudou com os gastos ordinários, como aluguel, energia elétrica, mercado e afins. Por intempéries da vida, sua atividade já não mantinha os custos da residência.
Tanto é que Álvaro nem prosseguiu com o inventário do pai, pois não havia bens deixados, e sim, dívidas acumuladas durante anos. Nessa oportunidade, um dos credores, entendendo que sua execução não poderia ficar sem um responsável, direcionou o processo ao herdeiro de Heitor, seu filho.
Com parcos rendimentos, Álvaro buscou o auxílio de um advogado que pudesse lhe auxiliar na busca de alguma solução amigável com o credor. E para sua surpresa, foi informado que a dívida não lhe pertencia, haja vista ter sido contraída por seu pai, e caso houvesse herança a receber, seria essa parcela de patrimônio à qual recairia a dívida exigida.
Tendo em vista que a cobrança era via judicial, optou o advogado por ingressar com uma petição simples, chamada exceção de pré-executividade – sem custas judiciais e menos complexa – ao invés de uma ação de embargos à execução. E aqui a questão começa a ficar um pouco conturbada…
Tecnicamente, alegou Álvaro em sua petição que é parte ilegítima para figurar como executado na ação. Em outros termos, da obrigação inadimplida que resultou na execução, ele não fez/faz e nem fará parte, pois foi Heitor, seu falecido pai, quem a contraiu, e legitimidade processual é a capacidade de ser parte no processo em razão do direito questionado.
Ora, como quem era parte legítima na ação de execução morreu – Heitor – seu ativo e passivo é condensado no espólio, que é o conjunto de bens, direitos e obrigações da pessoa falecida, e para ele deveria ser direcionado os esforços com vistas ao recebimento da dívida. Este espólio, enquanto não aberto o inventário, é representado pelo administrador provisório, que possui uma ordem preferencial de nomeação, que são cônjuge, companheiro(a), herdeiro(a), testamenteiro(a) ou pessoa de confiança do juiz.
Do outro lado, o credor trouxe o seguinte argumento: quando se falece réu ou autor de determinada ação, seu sucessor é chamado para substituí-lo, e como Heitor, o executado, havia morrido, a legitimidade passaria a ser de Álvaro, seu herdeiro direto.
E qual foi a vertente que o magistrado de primeira instância adotou? A do credor, pois em sua interpretação, “ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º”, conforme o artigo 110 do Código de Processo Civil.
Mas para uma leitura mais acurada, observemos a ressalva colocada pelo artigo 110, especificamente sobre a observação ao artigo 313, § 2º, aplicável ao caso: § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I – falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses;…
Resumindo, caso haja o óbito do réu durante o curso da ação, suspende-se o processo para que seja promovida a intimação do espólio, caso não haja inventário, pois havendo, passar-se-ia, então, à intimação do inventariante.
É bom frisar que, quando o evento morte ocorre, transmite-se de imediato todo o conjunto de bens e direitos aos sucessores, de modo uniforme e indivisível, que leva o nome de espólio e é representado pelo administrador provisório, geralmente o cônjuge, e que já foi comentado linhas acima; já por inventário tem-se a figura do inventariante, pessoa nomeada que encabeça a coordenação da divisão da massa patrimonial a quem de direito; e por fim, a herança, todo o conjunto de bens, direitos e obrigações separado a cada um que participa desse processo, individualizado.
Voltando ao caso. Álvaro, indignado com a decisão, recorreu ao Tribunal de Justiça competente, reiterando os mesmos argumentos iniciais – sua ilegitimidade para sofrer um processo de execução por dívida adquirida por seu pai, e para sua alegria, teve acolhido seu pedido.
Esse trecho do acórdão é bastante esclarecedor: “Nem sempre a morte de uma pessoa natural dá lugar à figura do espólio, que só surge quando o falecido deixa bens ou direitos transmissíveis aos sucessores”. Ora, Heitor estava em pleno estado de insolvência, devendo aluguéis, prestações e demais despesas rotineiras, resultando em zero patrimônio a ser dividido.
Então a dívida é extinta, e o credor sairá no prejuízo? Exatamente! Há que se ter em mente uma máxima, que a dívida não passará da pessoa do falecido. Veja o que diz outro trecho da decisão:
“Ainda que não se saiba se o de cujus deixou ou não bens e direitos transmissíveis aos sucessores, pode-se dizer que, inexistindo inventário, não deve prosperar a ação movida contra o suposto herdeiro para o recebimento de dívida do falecido, pois de duas, uma: ou há herança e, portanto, espólio – cuja existência jurídica antecede a abertura de inventário -, hipótese em que o herdeiro não tem legitimidade passiva para responder à demanda, ou não há herança, hipótese em que a dívida do falecido já se extinguiu, no momento mesmo do falecimento.”
Apesar dos nomes fictícios e conjecturas adaptadas para deixar a explicação mais lúdica, esse caso é real, relatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no agravo de instrumento nº 1.0000.22.180520-3/001, e uma situação muito mais comum do que se pensa.
A morte é o único fato inescapável de nossa existência, e fora os efeitos que afetam profundamente o psicológico, sua atuação no campo patrimonial é inegável. Supondo que Álvaro fosse passivo à cobrança, certamente sua vida financeira estaria prejudicada por muitos anos.
Não poderia Heitor prever que sua prole pudesse sofrer as consequências por suas dívidas, e pela fatalidade, seu credor buscou a satisfação de seu crédito frente à pessoa estranha pela lógica jurídica. Deveria, isto sim, buscar intimar o espólio – já que não havia inventário à época – preferencialmente na pessoa de sua esposa como administradora, levantar ativo e passivo, e se fosse o caso, requerer a abertura do processo de inventário.
A conclusão que se chega é a seguinte: caso as dívidas superem os ativos recebidos quando se fala em herança, busque assessoria legal que possa lhe orientar. O consciente coletivo, norteado por valores, dita que se há dívidas, estas precisam ser pagas, e assim agimos, pois não podemos pensar de maneira “desonesta”. Mas não se trata disso, e sim, de entender como funciona o sistema legal, e sua aplicação individualizada a cada caso.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do BLS Advogados.
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