Por David Roberto R. Soares da Silva
No apagar das luzes do ano legislativo (14 de dezembro último), a Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que acaba com o diferimento da tributação dos lucros das empresas offshore para as pessoas físicas.
Trata-se de assunto relevante pois, se convertido em lei, o Projeto de Lei nº 3.489/2021 (PL 3.489/2021) irá modificar radicalmente a forma como as pessoas físicas devem tratar os lucros de suas empresas offshore, acabando com a oportunidade (atualmente em vigor) de diferir imposto de renda para o momento da efetiva distribuição dos lucros.
No entanto, vale destacar dois pontos importantes: 1) isso ainda é um projeto de lei, cuja apreciação ainda precisa ser finalizada na Câmara dos Deputados e, depois no Senado Federal; e, 2) o projeto é falho e deixa diversas dúvidas sobre o seu alcance.
Com relação ao primeiro ponto, note-se que ele foi aprovado pela CFT, devendo ser remetido, agora, para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Se aprovado na CCJ, ele vai direto ao Senado Federal, sem a necessidade de passar pelo Plenário da Câmara dos Deputados. No entanto, se rejeitado pela CCJ, poderá ser apreciado no plenário antes de ser remetido ao Senado.
O PL 3.489/2021 foi recebido na CCJ em 15 de dezembro e sua apreciação ficará para 2023. Ou seja, para 2023, nada muda com relação à tributação das offshores para o contribuinte pessoa física.
Mas, vamos ao PL 3.489/2021 propriamente dito, cuja redação é simplista e precária, cobrindo em apenas dois artigos uma matéria tão complexa.
Primeiramente, o PL 3.489/2021 estabelece que os lucros das offshores serão considerados disponibilizados e tributados (pelo IR mensal – Carnê-Leão (zero a 27,5%[1]) na data do seu balanço[2]. Essa regra, no entanto, se aplica somente às empresas localizadas nos chamados paraísos fiscais, que são somente aqueles listados pela Receita Federal como com ‘tributação favorecida’ e incluídos na Instrução Normativa nº 1037/2010 e alterações posteriores. A regra também vale para empresas que se beneficiam de regime fiscal diferenciado, também listado pela Receita Federal no mesmo normativo.
Sendo assim, empresas estabelecidas em localidades não listas, ou sujeitas a regimes fiscais também não listados, não se sujeitariam às novas regras, sendo permitido o diferimento até o momento da distribuição efetiva dos lucros, tal como ocorre atualmente.
A variação cambial positiva entre a data do balanço e a data do efetivo recebimento dos lucros será também tributada, mas tratada como ganho de capital, com alíquotas que variam de 15% a 22,5%[3].
As regras do PL 3.489/2021 se aplicam às empresas ‘controladas’ no exterior, assim entendidas as pessoas jurídicas ou entidades não personificadas em que o contribuinte residente no Brasil:
- seja titular de direitos que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e poder de eleger a maioria de seus administradores; ou
- possua mais de 50% de participação no capital social, ou equivalente, nos direitos à percepção de seus lucros ou ao recebimento de seus ativos na hipótese de sua liquidação.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que três pessoas físicas que detivessem, cada uma, 1/3 de uma offshore estariam fora da regra do PL, podendo permanecer no regime de diferimento tributária atualmente em vigor.
Ainda que isso possa acontecer em alguns casos, o PL 3.489/2021 limita o uso abusivo desse tipo de manobra em seu Art. 2º ao dizer que as regras do projeto se aplicam “às pessoas físicas residentes (…) que, em conjunto com outras pessoas físicas ou jurídicas, residentes e domiciliadas no País ou no exterior, consideradas vinculadas, detenham participação superior a cinquenta por cento do capital votante da pessoa jurídica controlada domiciliada no exterior”.
A definição de pessoa vinculada é emprestada da legislação tributária e inclui as seguintes situações:
- a pessoa física que seja cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau, da pessoa física residente no País;
- a pessoa jurídica cujos diretores ou administradores sejam cônjuges, companheiros ou parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, da pessoa física residente no País;
- a pessoa jurídica da qual a pessoa física residente no País seja sócia, titular ou cotista;
- a pessoa física que seja sócia, conselheira ou administradora da pessoa jurídica da qual a pessoa física residente no País seja sócia, titular ou cotista; e
- a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no País ou no exterior, que seja associada a qualquer pessoa jurídica da qual a pessoa física residente no País seja sócia, titular ou cotista, na forma de consórcio ou condomínio, conforme definido na legislação brasileira, em qualquer empreendimento.
As regras dos itens 3 a 5 se aplicam às participações que representem mais de 10% do capital votante.
Voltando ao exemplo acima, e considerando as regras de pessoa vinculada, pode-se dizer que três amigos ou três primos (parentes de 4º grau de acordo com o Direito Civil brasileiro), poderão ser sócios de uma offshore em paraíso fiscal, desde que nenhum deles tenha preponderância permanente nas decisões da empresa nem detenha mais de 50% do capital da empresa ou na percepção dos lucros da empresa.
Não obstante essa possibilidade, é importante notar que o PL 3.489/2021 não esclarece uma série de pontos relevantes e que, se não resolvidos até a edição da lei, poderão ser objeto de questionamento judicial.
Vamos a eles:
Talvez o ponto obscuro mais relevante diga respeito aos lucros apurados, mas ainda não distribuídos antes da publicação da lei. O PL 3.489/2021 é silente nesse aspecto e não seria de surpreender que o fisco pretendesse alcançar os lucros passados, causando disputas judiciais.
Ainda na questão do lucro, não raro a contabilidade da offshore mostra lucros realizados e não realizados durante o exercício. Os lucros realizados são aqueles já apurados, como, por exemplo, a venda de uma ação na Bolsa com lucro. Já o lucro não realizado pode incluir aquele que, na data do balanço, aponta para um lucro em uma operação se ela fosse liquidada na data do balanço. É um lucro potencial, muito comum nas offshores com investimentos financeiros. Outra forma de lucro não realizado é aquele decorrente de investimentos em outras empresas controladas ou coligadas detidas pela offshore.
E por falar em controladas (cujo controle é detido pela offshore) e coligadas (controle não detido pela offshore), o PL 3.489/2021 tampouco endereça essa questão. O que deverá ocorrer, por exemplo, com uma offshore que investe em private equity no exterior, detendo participações minoritárias em diversas empresas. A offshore poderá não ter acesso às demonstrações financeiras dessas empresas e, pior, poderá não receber dividendos dessas empresas antes de o contribuinte no Brasil ter que pagar o Carnê-Leão no mês seguinte.
Nesse caso, estaríamos diante de um verdadeiro confisco, pois o contribuinte brasileiro teria que pagar o IR no Brasil antes de receber os dividendos pagos pelas coligadas de sua offshore.
Não podemos nos esquecer que, como regra, o IR pessoa física tem como base o regime de caixa, ou seja, dinheiro disponível para o contribuinte. No caso de uma offshore com recursos investidos no mercado financeiro, isso é até possível de imaginar se o contribuinte controlar o offshore e determinar a distribuição de lucros. Mas em uma offshore com investimentos em private equity isso pode não ser possível. O contribuinte, mesmo controlando a offshore, pode não controlar o fluxo de lucros que devem ser pagos por empresas que a offshore investe. E aí temos um problema.
Outro ponto é a compensação de prejuízos. O PL 3.489/2021 nada dispõe sobre a possibilidade de compensação de prejuízos ou sobre a sua proibição. Imagine uma offshore com prejuízo antes da edição da lei de USD 150.000 que apura lucro de USD 50.000 depois da lei. Poderá o contribuinte compensar o prejuízo passado com o lucro futuro? Especificamente nesse ponto, se a lei não proibir, a compensação deverá ser permitida dado que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (Art. 5º, inciso II da Constituição).
Por fim, o PL 3.489/2021 deixa em aberto a extensão do termo “participações em controlada” no exterior. Será que suas disposições se aplicariam aos smart funds ou outro tipo de fundo de investimento exclusivo ou restrito? E os trust? Trust não são ‘detidos’ por meio de ‘participações’, assim como as fundações privadas estrangeiras.
Será que o PL 3.489/2021 deixará a porta aberta para algum planejamento?
A ver…
[1] Art. 1º, § 1º.
[2] Art. 1º, caput.
[3] Art. 1º, § 2º.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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