O bem de família é um poderoso instituto de direito civil que permite proteger a moradia residencial contra penhora e dívidas do seu proprietário. Em alguns casos, registros de imóveis têm questionado a possibilidade de uso desse instituto para imóveis recém-adquiridos.
A proteção do imóvel destinado à família decorre de preceito constitucional (Art. 226) que reconhece a família como base da sociedade e lhe concede proteção especial do Estado. Uma dessas proteções é o bem de família, assim considerado o imóvel de residência habitual da entidade familiar, sendo este dividido em duas espécies: o legal e o voluntário.
Há mais de um século o bem de família se encontra contemplado no Direito Brasileiro, primeiramente no Código Civil de 1916 (arts. 70 a 73), e posteriormente complementado pelo Decreto-lei nº 3.200/1941 e alterado pela Lei nº 6.472/1979. Até nesse momento, a única possibilidade de acesso a essa forma de proteção patrimonial se dava voluntariamente por meio de escritura pública lavrada em cartório de notas e devidamente registrada em cartório de registro de imóveis.
Na ocasião, os requisitos eram: a) apenas o chefe de família poderia fazê-lo; b) inexistência de dívidas cuja instituição pudesse afetar o pagamento; c) prédio para domicílio da família e, com o advento do decreto-lei, d) limite de valor do imóvel para sua instituição e prazo de dois anos de moradia.
O prazo de dois anos foi introduzido pela Lei nº 6.472/1979 que alterou o art. 19 do Decreto-lei nº 3.200/1941, que passou a ter a seguinte redação:
“Art. 19. Não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos.”
É neste dispositivo que alguns cartórios de registro de imóveis têm se apegado para negar a instituição de bem de família voluntário em imóveis novos ou recém-adquiridos pelo instituidor. Como não há revogação expressa do art. 19, esses cartórios entendem que o prazo mínimo de dois anos de residência no imóvel ainda se encontra vigente.
Mas não é bem assim, senão vejamos.
Em 1990, entrou em vigor a Lei nº 8.009/1990 que trouxe disposições sobre a impenhorabilidade do bem de família, as exceções a essa regra geral, e novos conceitos de residência para os efeitos da impenhorabilidade, revogando as disposições em contrário (art. 8º).
De acordo com o art. 5º da Lei nº 8.009/1990, para os efeitos de impenhorabilidade considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Em sequência, seu parágrafo único aduz que na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis.
Assim, tem-se que desde a Lei nº 8.009/1990, lei especial e posterior, deixou de existir o requisito temporal de dois anos de moradia no imóvel a ser instituído como bem de família, por força de lei ou constituição voluntária, em razão da revogação estabelecida no art. 8º dessa lei.
Indo mais além, em 2003 entrou em vigor o atual Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que tratou inteiramente da matéria “bem de família” em diversos artigos, com ressalva expressa de que seriam mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. Diz seu art. 1.711:
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Para fins de interpretação, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) dispõe (art. 2º, § 1º), que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Em que pese a própria Lei nº 8.009/1990 já ter expressamente revogado as disposições em contrário – e entenda, aqui, as disposições do Decreto-lei nº 3.200/41 sobre o conceito de residência para fins de enquadramento como bem de família – a posterior vigência do Código Civil de 2002, tratando inteiramente do assunto bem de família, enterrou de vez a exigência do critério temporal de 2 anos de moradia no imóvel, o qual não condiz mais com a realidade vivenciada pelo referido instituto.
De acordo com o art. 1.711 do Código Civil, foram mantidas apenas as regras de impenhorabilidade da lei especial, ou seja, apenas permaneceu vigente a Lei nº 8.009/1990, a qual não estabelece qualquer requisito temporal mínimo.
É possível afirmar que Lei nº 8.009/1990 criou um novo critério, o de “moradia permanente”, sem exigir qualquer tempo prévio e mínimo de moradia da família no local. Logo, se a lei nova e especial criou outro critério (moradia permanente), o critério da lei anterior (dois anos de moradia), por ser contrário à lei nova, foi expressamente revogado.
Ademais, pelo art. 1711 do Código Civil de 2022, o bem da família registrado voltou a ter limitação de valor (até um terço do patrimônio líquido), porém sem qualquer exigência de período prévio de moradia pela família.
Assim, tem-se claro que o prazo de moradia de dois anos, previsto no art. 19 do Decreto-lei nº 3.200/41, não está mais vigente.
Some-se a isso o fato de que o Poder Judiciário tem admitido até mesmo a instituição de bem de família em imóvel ainda em construção, para fins de impenhorabilidade o que por si só reforça a tese de que o requisito de dois anos de moradia do imóvel não mais se aplica.
Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o que define o bem de família é a finalidade que lhe é atribuída, podendo a caracterização ocorrer de forma antecipada. Logo, impossível exigir a residência por dois anos como determinava o revogado art. 19 do Decreto-lei nº 3.200/41.
EMENTA RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – CONTRATO DE MÚTUO – PENHORA DE TERRENO COM UNIDADE HABITACIONAL EM FASE DE CONSTRUÇÃO – IMPUGNAÇÃO – PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA – INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE REPUTARAM PENHORÁVEL O BEM IMÓVEL PERTENCENTE AOS EXECUTADOS, POR NÃO OSTENTAR A QUALIDADE DE RESIDÊNCIA, ANTE O FATO DE ESTAR EM EDIFICAÇÃO – INSURGÊNCIA RECURSAL DA PARTE EXECUTADA. Hipótese: a controvérsia recursal consiste em definir se é alcançável pela proteção de que trata a Lei nº 8.009/90 (bem de família) terreno cuja unidade habitacional está em fase de construção.
1. O Tribunal de origem concluiu pela penhorabilidade do bem, sob o fundamento de ser requisito ao deferimento da proteção legal estabelecida na Lei nº 8.009/90, servir o imóvel como residência, qualidade que não ostentaria o terreno com unidade habitacional em fase de construção/obra.
2. A interpretação conferida pelas instâncias ordinárias não se coaduna à finalidade da Lei nº 8.009/90, que visa a proteger a entidade familiar, razão pela qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família devem receber interpretação restritiva. Precedentes.
2.1. A impenhorabilidade do bem de família busca amparar direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana e a moradia, os quais devem funcionar como vetores axiológicos do nosso ordenamento jurídico.
2.2. A interpretação que melhor atende ao escopo legal é a de que o fato de a parte devedora não residir no único imóvel de sua propriedade, por estar em fase de construção, por si só, não impede seja ele considerado bem de família.
(…) 3. Recurso especial parcialmente provido, a fim de cassar o acórdão recorrido e determinar o retorno dos autos à Corte a quo, para que, à luz da proteção conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990, e afastada a necessidade do interessado residir no imóvel penhorado, bem como, da moradia já estar edificada, proceda a Corte de origem ao rejulgamento do agravo de instrumento, analisando se o imóvel penhorado, no caso concreto, preenche os demais requisitos para o amparo pretendido. (STJ, Resp nº 1.960.026-SP, julgamento em 11.10.2022).
Esse entendimento já foi consolidado pelo STJ, conforme demonstra o item 10 do Jurisprudência em Teses nº 44 do Superior Tribunal de Justiça:
10) O fato do terreno encontrar-se desocupado ou não edificado são circunstâncias que sozinhas não obstam a qualificação do imóvel como bem de família, devendo ser perquirida, caso a caso, a finalidade a este atribuída.
Dessa forma, tem-se que os cartórios de registro de imóveis não podem negar a instituição voluntária de bem de família sob a alegação de o instituidor não residir no imóvel há mais de dois anos, dado que esse requisito temporal, originalmente contemplado no art. 19 do Decreto-lei nº 3.200/1941, não está mais vigente no ordenamento brasileiro.
Ana Luiza Ribeiro Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados em Belo Horizonte/MG.
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