Por Ivone Zeger
Filhos daqui, enteados dali, companheiro sem fonte de renda… como organizar esse turbilhão?
“Quando eu morrer, quem ficar que cuide de tudo”. Quem nunca ouviu essa frase? A cultura ocidental forjou a ideia de que é preciso esquecer a morte para ter uma vida feliz. Sendo assim, parar e pensar em herança, testamento e congêneres não fazia parte das providências práticas, sobretudo entre os brasileiros, há até pouco tempo.
Mas essa tendência vem se revertendo, inclusive entre pessoas mais novas.
É verdade que o direito sucessório se encarrega de ditar as regras e definir quem pode ou não suceder bens. Mas isso não impede que verdadeiras batalhas judiciais desemboquem nos tribunais. E não se trata de batalhas por milhões, não. Uma casa na praia que um herdeiro acha que é dele, um terreno que está em nome de um dos filhos e o outro também quer, a casa que tem de ser dividida por filhos de mais de um casamento, enfim, basta um único imóvel para a confusão se instalar.
A falta de um testamento também pode incorrer em injustiças. Os juristas avaliam que as novas configurações familiares dão ensejo a essas situações.
Só para dar um exemplo: Rosa tinha um filho de seis anos, o Carlinhos, quando se casou com Fernando, que tinha dois filhos de casamento anterior. Fernando foi o padrasto de Carlinhos, e ofereceu a ele sustento material e emocional, exatamente como fazia com seus filhos. O tempo passou, as crianças cresceram, Fernando faleceu. Uma parte do patrimônio que Fernando conquistou será de Rosa. Mas outra parte do patrimônio ficará com os dois filhos do primeiro casamento. Carlinhos ficará sem nada. Talvez, sem nem mesmo o direito de usar o carro do padrasto, tido por ele como pai. É complicado!
Os casamentos homoafetivos também se somam à lista de situações nas quais a falta de um testamento pode fazer pender a balança para o lado errado. Os direitos desses casais ainda não estão esmiuçados nas leis, embora casamentos civis homoafetivos estejam acontecendo com certa normalidade nos cartórios do País.
Mas até porque ainda há uma fragilidade legal – alguém da família de um dos cônjuges pode, por exemplo, contestar o casamento – a sucessão de bens também fica ameaçada e apenas a elaboração de um testamento resolve.
O mesmo se dá com os casais, homoafetivos ou não, que não se decidiram pelo casamento civil. No contexto da união estável, os direitos sucessórios dos companheiros, após o falecimento de um deles, é bastante polêmico.
As interpretações da lei variam bastante, dependendo da corrente jurídica que arbitra no caso. Há a tendência de garantir aos companheiros os mesmos direitos dos cônjuges que, de acordo com a lei, seriam herdeiros necessários, portanto com os mesmos direitos dos descendentes.
Outra vertente coloca o companheiro apenas como herdeiro legítimo e, como tal, poderá simplesmente não herdar nada e ficar apenas com a chamada “meação”, ou seja, com metade do patrimônio que foi construído pelo casal. De novo, é uma situação na qual o testamento é a maneira mais tranquila de assegurar que os bens tenham o destino que se deseja.
Por que, então, não lançar mão desse dispositivo?
É por essas razões citadas acima que vem aumentando o número de pessoas interessadas em elaborar seus testamentos. Pelas leis de sucessão, quem tem herdeiros necessários – descendentes, ascendentes ou cônjuge – pode destinar 50% de seus bens em testamento a quem ele quiser, é a denominada parte disponível da herança. Os outros 50% compõem a legítima, ou seja, a parte que obrigatoriamente deve ir aos herdeiros necessários.
Com a sua parte disponível, o testador pode, por exemplo, contemplar seu enteado, ou sobrinhos, ou pessoas que não sejam da família, mas que por algum motivo o testador considera merecedor de parte de seus bens.
Também é com essa parte disponível que um companheiro pode beneficiar o outro, no caso das uniões estáveis. Assim, caso haja alguma questão que porventura impeça o reconhecimento judicial da união estável, o companheiro estará menos vulnerável. Importante saber que para se habilitar à sucessão do companheiro falecido, quando não há testamento, o reconhecimento judicial da união estável é imprescindível. E muitas vezes, nem mesmo a existência de filhos em comum garante esse reconhecimento por parte do Judiciário.
Se o testador que está em união estável não tiver descendentes – filhos, netos ou bisnetos – ou ascendentes – pais, avós ou bisavós –, ele poderá testar todo o seu patrimônio para o companheiro. Por sinal, se assim não o fizer, o companheiro sobrevivente eventualmente terá de dividir a herança com outros parentes, até mesmo com um sobrinho neto ou primo do falecido. O ideal, nessa situação, é que um companheiro teste seu patrimônio em favor do outro e vice-versa, garantindo segurança material a ambos.
Por outro lado, vale lembrar que o casamento civil, nessas circunstâncias de não haver outros herdeiros, também garante ao cônjuge sobrevivente a posição de único herdeiro, sem necessidade de testamento.
Elaborar um testamento requer experiência profissional. O testamento público é o procedimento mais indicado. Legalmente, não seria preciso a presença de um advogado, bastando o testador se dirigir ao Tabelionato de Notas, acompanhado de duas testemunhas, que não podem ser nem parentes, tampouco beneficiárias do testamento. Porém, muitas vezes, uma única irregularidade pode anular o testamento, assim, por mais simples que ele seja, é importante o acompanhamento de um profissional.
Além disso, antes de elaborar o testamento, é interessante conhecer os instrumentos jurídicos disponíveis. Por exemplo, as cláusulas de usufruto, impenhorabilidade, inalienabilidade e incomunicabilidade – que são palavrões, literalmente, mas muito úteis no gerenciamento da sucessão –, além de informações acerca das doações em vida, transferências de patrimônio, os impostos a pagar, as outras modalidades de testamento – talvez mais adequadas – e a observância dos direitos sucessórios dos herdeiros.
O fato é que uma vez empenhado em elaborar o testamento, outros aspectos patrimoniais podem ser regularizados e resolvidos. Isso pode trazer noites de sono tranquilas e mais sossego do que a prática de meditação!
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina. É autora, entre outras obras, do livro “Família: Perguntas e Respostas”, publicado pela Editora B18.