Por Ivone Zeger
Entre os desafios que a vida impõe e do qual ninguém escapa está a morte de entes queridos. Eles se vão e deixam um rastro de lembranças, boas e ruins, afinal, ninguém agrada todo mundo, o tempo todo. Na maioria das vezes, as pessoas deixam bens, que podem ser ínfimos e apenas afetivos – como fotos, livros e discos – ou patrimônios que até podem resolver a vida financeira da família por três gerações seguintes!
Não estando na linha sucessória, tampouco citado em testamento, tornar-se um herdeiro é impossível. Por outro lado, há situações nas quais é melhor sequer ter o nome mencionado.
De fato, quando há patrimônio, não é raro que todos os parentes tenham a maior boa vontade em telefonar, se informar, se colocar à disposição para “ajudar com os papéis”. A tia, o primo, a cunhada, o genro, todos querem colaborar. Mas se rumores na família dão conta de que há dívidas, alguém aparece?
Seja qual for o caso, alguém tem de se responsabilizar pela abertura do inventário. E são os herdeiros necessários do falecido – filhos, netos ou bisnetos ou ainda, na falta destes, os pais, avós ou bisavós; o cônjuge, e na atualidade também o companheiro – que devem tomar as primeiras providências. É verdade: há quem morra e não tenha descendentes nem ascendentes, tampouco cônjuge ou companheiro. Daí, realmente, são os demais parentes que devem “aparecer” e dar conta do recado.
Não é fácil encarar uma herança que se configura em dívidas, mas paciência e interesse podem resolver. Vejamos um exemplo:
Quatro filhos, todos formados; cinco netos, um casamento de 32 anos marcado por uma parceria feliz. Aos 62 anos, Rogério era proprietário de uma empresa de transportes, de médio porte, consolidada no mercado. Foi um empreendimento que ele assumiu ainda rapaz e com o qual constituiu a base financeira para o sustento da família. Dois imóveis pagos, um deles era sua residência. O outro era uma casa de veraneio na praia. Rogério tinha recursos aplicados em poupança e em ações. Considerava que, dessa forma, assegurava sua velhice e a de sua esposa. Tudo ia bem até sentir uma dor no estômago, um mal estar que o levou ao hospital. Foram em vão os esforços dos médicos.
Passada a pior fase da dor da perda, quinze dias após o falecimento de Rogério, a família se reuniu. Precisavam discutir a situação da empresa e dos imóveis para dar andamento às questões legais. A princípio, parecia não haver motivo para preocupações. Nenhum dos filhos, tampouco a esposa, tinham funções na empresa, que poderia ser vendida, inclusive, já havia interessados.
Os filhos tinham como consenso que, com a venda, assegurariam a tranquilidade de vida para a mãe e ainda poderiam obter uma quantia razoável para capitalizar seus próprios empreendimentos: a compra de um apartamento, um MBA nos Estados Unidos ou aplicar a herança com vistas a garantir o estudo dos filhos. Eles acreditavam que fazer bom proveito da herança seria a melhor maneira de homenagear a memória do pai.
Para a reunião, os filhos de Rogério chamaram o gerente da empresa de transportes, o braço direito de Rogério nos negócios. Como era de se esperar, o gerente chegou com semblante constrito. E, embora também fosse por sentir a falta do chefe e amigo, sua seriedade tinha mais outro motivo: a empresa estava apinhada de dívidas, contraídas nos últimos anos para o aumento da frota. Os empréstimos realizados não seriam um problema se o caixa da empresa os comportasse.
Ocorre que Rogério faleceu num momento delicado, no qual sua presença diante dos gerentes de banco valia mais do que a conta bancária da empresa. “Provavelmente teria superado a má fase”, explicou o gerente. Para além de bancos, havia credores entre os fornecedores. O gerente também trouxe o carnê de IPTU da casa na praia. Com as dificuldades financeiras, Rogério deixara acumular prestações.
E agora?
A lei entende que o falecimento de uma pessoa não infere na extinção de suas dívidas, que passam, então, a ser de responsabilidade dos herdeiros. Obviamente, se é possível herdar patrimônio e direitos, também se herda obrigações e dívidas. Um herdeiro não será responsável por uma dívida maior do que suas posses, mas também não será beneficiado com qualquer quinhão antes de acertar a situação com os credores. No caso relatado acima, nem tudo estava perdido. Não só os bens da empresa – principalmente a frota de carros –, era a salvaguarda da situação. Com décadas de atuação no mercado, a existência de clientes fiéis e a ética financeira de Rogério foram igualmente importantes nesse momento.
De imediato, o advogado avisou: a casa já quitada onde reside a esposa do falecido, por ser o único imóvel com essa finalidade, não poderia ser utilizado para pagamento de qualquer dívida. Ele se refere ao artigo 1º da lei nº 8.009/1990, que diz: “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam”.
Com a moradia da mãe assegurada, seguindo a ética do pai, os filhos queriam saldar todas as pendências. Iniciaram o processo de sucessão com a abertura do inventário. Eles mesmos informaram aos credores a abertura do inventário. Como dita a lei, os credores habilitaram-se, ou seja, foram incluídos no inventário dos bens deixados pelo falecido. Essa habilitação se dá por meio de uma petição que é apresentada ao juiz responsável, contendo a documentação que comprova a dívida.
O dinheiro aplicado em poupança e ações, somado à venda de parte da frota de veículos foi suficiente para pagar as dívidas. Como a empresa continuasse em pé e com possibilidades de reerguer-se – o ponto era bom, a marca idônea, a clientela formada –, o gerente resolveu continuar com o negócio. Para isso, deveria obviamente comprar a empresa. Ofereceu a quitação das prestações do IPTU da casa da praia, que estava prestes a ser leiloada, e o pagamento de um valor mensal, por cinco anos. A família fechou negócio.
É certo que não sobrou dinheiro para facilitar a vida de ninguém. Mas os filhos de Rogério, todos já encaminhados na vida, já tinham aprendido com o pai que o maior patrimônio de uma pessoa é seu modo de agir no mundo.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires – UBA. É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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