Em recente decisão[1], o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) reafirma a separação entre os bens da pessoa física e pessoa jurídica, definindo os parâmetros da responsabilização de terceiro na cobrança do crédito tributário. O tema é relevante, especialmente para empresários.
Para entender melhor o que aconteceu, vamos segregar os temas, alterando o nome real por fictícios, além de ressaltar que tudo aqui transposto ocorreu na esfera administrativa, sem notícia de repercussão na esfera judicial.
Dos Fatos
A empresa XYZ, voltada ao comércio de materiais metálicos, comercializava regularmente com outras seis empresas, recebendo e emitindo um grande volume de notas fiscais pela aquisição e venda de produtos. Somente entre 2010 e 2011, foi contabilizado o montante R$ 64.957.320,60 em operações comerciais entre a XYZ e as outras empresas.
A Receita Federal, em procedimento fiscal, solicitou que a XYZ comprovasse materialmente a aquisição de mercadorias dos fornecedores, fato este que não restou demonstrado pela empresa.
Na realidade, o que ficou apurado pela Receita Federal foi que, além das aquisições não serem factíveis, havia um esquema de sonegação fiscal altamente complexo entre as empresas, que culminava com o enriquecimento dos envolvidos.
Em resumo, a Receita Federal apurou que a XYZ era uma empresa “noteira”, ou seja, uma entidade que simula o pagamento de títulos inidôneos a fornecedoras fictícias, com isso gerando grande volume de créditos de ICMS e IPI, além de impactar diretamente em outros tributos, como IRPJ, CSSL, PIS e COFINS. Tome nota que todos os sócios de todas essas empresas são pessoas interpostas, mais conhecidos como “laranjas”, muitos deles analfabetos, de parcas condições financeiras e idosos.
Passada essa primeira fase, de simulação de compra e venda de bens, o valor transacionado era então transferido diretamente para outras empresas, cujos sócios eram os reais beneficiários dos valores pagos pela XYZ. Ilustrando, a XYZ, em dado mês, adquiriu da ABC duas toneladas de ferro, notas fiscais e demais obrigações totalmente registradas em seus registros contábeis. No entanto, o pagamento, feito preferencialmente por cheque, era destinado a outra empresa, sem relação alguma com a XYZ e a ABC, cujos sócios e administradores eram os reais destinatários dos valores.
Tem-se, então dois níveis de atuação: o primeiro, aquele em que a simulação de fato ocorre, e o segundo, onde há o benefício e aproveitamento do ilícito pelos sócios de outras empresas que nada comercializam, mas se beneficiam da sonegação fiscal.
Da Responsabilização
Com toda a parte fática delineada, partiu a Receita Federal em busca dos responsáveis tributários pelos desvios. Para isso, fez uso do artigo 135, III do Código Tributário Nacional:
“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
(…)
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”
Desse modo, todos os sócios e administradores das empresas do segundo nível – aquelas que recebiam efetivamente o valor das transações simuladas – foram responsabilizados pessoalmente pelo débito gerado em razão do esquema fraudulento. Porém, e aqui é o ponto central da discussão travada no CARF, uma das sócias dessas empresas era constituída por uma holding patrimonial, cujos sócios eram filhos de um dos principais agentes que atuaram no esquema. Para fins de melhor entendimento, chamaremos a entidade de Valhalla Participações Ltda.
Daí surgiu a dúvida aos Conselheiros do órgão julgador: seriam eles, os sócios da holding patrimonial, sujeitos ativos no esquema de sonegação de impostos? Agiriam eles de modo voluntário e consciente direcionados a obter vantagem com o esquema?
Alegaram os três irmãos que a Valhalla foi constituída somente para fins de sucessão familiar, e que o intuito maior foi evitar conflitos futuros em razão do passamento de seu genitor, a mesma pessoa que figura como responsável solidário pelo esquema tido como fraudulento, envolvido diretamente com as empresas de segundo nível de atuação.
Como linha de partida, o voto vencedor no Conselho dissecou o artigo 135, III do CTN, elencando dois elementos principais para sua incidência, o pessoal e o fático. O primeiro diz respeito ao agente que praticou o ato em nome da pessoa jurídica (contribuinte principal), e o segundo – elemento fático – diz respeito ao ato exercido com excesso de poder, ou infração à lei, contrato social ou estatuto da empresa.
Como conclusão, não ficou demonstrado que os três irmãos/sócios da Valhalla agiram como dirigentes das empresas envolvidas (a XYZ e suas “parceiras” comerciais), também não foram considerados sócios de fato ou mandantes de qualquer uma das empresas envolvidas no esquema.
É do conteúdo do voto condutor:
“Ainda que se possa, a depender da circunstância fática, ser dispensada a apresentação de atos formais para responsabilizar administradores de fato, era no mínimo necessária a descrição na acusação fiscal de quais os atos, formais ou não, ou conduta específica que teriam sido qualificados como suficientes a “vincular” cada um dos filhos às ações praticadas com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, no que o auto de infração em questão foi falho”.
Também foi objeto de análise pelo Conselho a aplicação do artigo 124, I do Código Tributário Nacional, que diz:
“Art. 124 – São solidariamente obrigadas:
I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.
Foi travado um longo debate sobre a extensão da expressão “interesse comum” durante todo o processo. Ora conceituando o “interesse comum dos recorrentes na ocultação da ocorrência do fato gerador. Como reais beneficiários e como mentores desta organização criminosa, gerenciavam a atuação das entidades de modo simulatório, sem que o fisco percebesse suas efetivas movimentações financeiras. Acabaram obscurecendo a real capacidade contributiva de todas as entidades, materializando, com isso, sua intenção fraudulenta”.
Em contraponto, avaliou o CARF que “o interesse deve ser no fato ou na relação jurídica relacionada ao fato jurídico tributário, como visto acima. Assim, o mero interesse econômico, sem comprovação do vínculo com o fato jurídico tributário (incluídos os atos ilícitos a ele vinculados) não pode caracterizar a responsabilização solidária, não obstante ser indício da concorrência do interesse comum daquela pessoa no cometimento do ilícito”.
Ou seja, por “interesse comum”, há que se observar a relação imbricada entre a pessoa física e a pessoa jurídica, que resultaria em confusão patrimonial. Dita relação se revelaria quando os negócios dos sócios se confundem com os da pessoa jurídica, resultando em verdadeira indistinção do que pertence a quem.
Não custa lembrar que um dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica é justamente a confusão patrimonial, o que pode acarretar a responsabilização dos sócios por obrigações contraídas em nome da empresa.
E sobre a confusão patrimonial, seriam necessários dois aspectos fundamentais: i) administrativo, visto como a capacidade de gestão empresarial, o exercício do poder nas decisões tomadas pela pessoa jurídica que deflagrava o fato gerador; e ii) econômico, no sentido de verificar quem efetivamente se utiliza dos recursos da pessoa jurídica, ou quem de fato se beneficia dos montantes que foram objeto de evasão fiscal.
Como não restou comprovada, durante todo o processo, a ingerência dos sócios da Valhalla em nenhuma das empresas de primeiro e segundo nível, muito menos o benefício financeiro direto, fruto do esquema tratado entre empresas, foram eles excluídos do auto de infração.
Lembrando que a Valhalla era uma holding patrimonial, instrumento muito utilizado em planejamentos patrimoniais e sucessórios. Tem por “objetivo específico deter bens e direitos, o que pode incluir bens imóveis, participações em outras empresas, veículos, embarcações etc.” (Planejamento Patrimonial – Família, Sucessões e Impostos, Editora B18, pg. 217).
No caso analisado, sem qualquer juízo sobre todo o ocorrido, atendo-se somente aos fatos, uma coisa é certa: não existe blindagem patrimonial! Os bens alocados em holding, seja familiar, seja patrimonial, não são imunes à sanção legal por comportamentos ilícitos, por mais emaranhados que sejam.
Pessoas jurídicas são ficções legais, criadas com o intuito de dinamizar as relações comerciais e administrativas, e sempre terão, ao fim de sua criação, pessoas físicas que lhe dão vida.
Assim, ainda que alguns profissionais da área insistam que a criação de pessoas jurídicas possam ser o salvo conduto para qualquer ilicitude, offshores, holdings e demais institutos jamais “blindarão” o patrimônio daquele que fez mal uso da entidade. Acabamos de ver acima um grande e belo exemplo disso.
[1] Processo administrativo 10935.720041/2015-43.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do BLS Advogados, em São Paulo.
Planejamento e proteção patrimonial são os temas centrais do nosso best-seller PLANEJAMENTO PATRIMONIAL: Família, Sucessão e Impostos: