Por Ana Luiza Naback
Tema pouco comentado diz respeito ao pagamento de pensão alimentícia depois da morte daquele obrigado a essa prestação. Será que os alimentos são devidos mesmo depois que passamos para outra dimensão?
De acordo com o Art. 1.700 do Código Civil, a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros, na forma do Art. 1.694. Também o Art. 23 da Lei nº 6.515/1977 (Lei do Divórcio) assegura que a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor.
A interpretação literal dos dispositivos faz com que a resposta ao questionamento do título seja positiva, assim como a análise histórica do direito, uma vez que no Código Civil de 1916 havia expressa proibição da transmissão da obrigação de prestar alimentos, o que não foi repetido pelo Código de 2002.
Ainda, vozes doutrinárias como Maria Berenice Dias, Conrado Paulino da Rosa e Milton Paulo de Carvalho Filho reforçam a transmissibilidade do dever de prestar alimentos após o falecimento do alimentante, limitada às forças da herança (Enunciado 343 do Conselho Federal de Justiça – A transmissibilidade da obrigação alimentar é limitada às forças da herança).
No entanto, a interpretação literal não é aplicada pela jurisprudência, notadamente a jurisprudência reiterada e nominada “consolidada” do Superior Tribunal de Justiça. No entender da Corte Superior, a interpretação do Art. 1.700 do Código Civil deve ser conforme aos demais preceitos insculpidos na legislação civilista, notadamente o caráter personalíssimo da obrigação alimentar. Quando se traz à tona a identidade personalíssima da prestação de alimentos cingida à esfera do alimentante e do alimentado, a obrigação alimentar falece com o alimentante.
No julgamento do Resp nº 1.835.983-PR, nas palavras do STJ, em síntese, a obrigação de prestar alimentos, por ter natureza personalíssima, extingue-se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio recolher, tão somente, eventuais débitos não quitados pelo devedor quando em vida, ressalvada a irrepetibilidade das importâncias recebidas pelo(a) alimentado(a). Ademais, excepcionalmente e desde que o alimentado seja herdeiro do falecido, é admitida a transmissão da obrigação alimentar ao espólio, enquanto perdurar o inventário e nos limites da herança.
No caso concreto julgado, a Corte afastou o pleito alimentar da ex-companheira do falecido frente ao seu espólio, que recebia alimentos provisórios decorrentes de acordo de dissolução da união, sob o argumento de que não há a transmissibilidade da prestação de alimentos, considerando justamente a natureza personalíssima. Nesse contexto, cumpre salientar que o fato de receber alimentos provisórios condiz com o rompimento do vínculo convivencial (ou conjugal, se fossem casados), desqualificando a ex-companheira como herdeira e extirpando o dever de o espólio arcar com os alimentos[1].
Dessa forma, na visão do STJ, com o falecimento concomitante da obrigação de prestar alimentos, o que se transmite são os eventuais débitos alimentares em aberto quando da morte do alimentante, na medida em que se perfaz como dívida do espólio e encontra limite nas forças da herança, especialmente quando o alimentado não é herdeiro do alimentante.
Por outro lado, na hipótese de o alimentado ser também herdeiro do alimentante falecido, admite-se a transmissibilidade da prestação alimentar desde que anteriormente fixada, tal como se um adiantamento fosse, mormente o fato de que procedimentos de inventário costumam se alongar no tempo e, por isso, o alimentado não pode ficar sem acesso aos proventos de subsistência até a partilha e fruição dos bens que lhes são de direito.
O desentendimento entre a jurisprudência atual, a literalidade da lei civil e as vozes doutrinárias relevantes em sentido contrário deixa o cenário incerto, sem a possibilidade de assegurar com veemência que a discussão está encerrada nos termos definidos pelo STJ.
Isso, contudo, não significa dizer que o alimentado sempre ficará à mercê da instabilidade jurídica no tocante aos seus alimentos caso haja o falecimento do alimentante. A lei civil dispõe de ferramentas sólidas que podem ser adotadas pelo alimentante ainda em vida em prol do alimentado, evitando, assim, a discussão e o eventual desamparo do alimentado.
Trata-se da instituição do legado de alimentos, previsto no Art. 1.920 (o legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto do legatário viver, além da sua educação, se ele for menor) ou do legado de renda vitalícia e de pensão periódica, nos termos do Art. 1.926 (se o legado consistir em renda vitalícia ou pensão periódica, esta ou aquela correrá da morte do testador), que serão objeto do próximo artigo destinado exclusivamente ao esmiuçar dessas ferramentas.
[1] Isso, contudo, não significa que a ex-companheira, ainda diante do mesmo caso, viria a deixar de receber parcelas do espólio como adiantamento da meação dos bens que foram adquiridos na constância da união estável e que ainda pendiam de partilha quando do falecimento do alimentante e ex-companheiro, não cabendo a confusão da natureza das prestações nesse momento.
Ana Luiza Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados em Minas Gerais.
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