Por Ivone Zeger
Pode haver algo mais lamentável no mundo empresarial do que ver uma família debilitar-se por causa de herança e, com ela, uma empresa consolidada ruir?
E se a empresa em questão for detentora de uma atividade secular, tradicional, quase sagrada como a vinicultura? Dionísio se desespera no Olimpo e Baco se descabela no panteão: a Vega Sicilia, a vinícola mais tradicional da Espanha, foi o centro de uma disputa judicial envolvendo o proprietário, David Álvarez, falecido em novembro de 2015 aos 88 anos, e cinco de seus sete filhos.
Na verdade, a vinícola é uma das empresas pertencentes ao grupo administrado pela família, o El Enebro, que além de vinho, lida com empresas imobiliárias e carne bovina. O patriarca Álvarez não queria mais os filhos gerindo seu império. Enquanto isso, os filhos tentavam tirar do pai o controle do Grupo Eulen, uma multinacional de serviços da qual não fazem parte, tentando negociar com os acionistas.
Com a crise econômica na Espanha, a biografia do empresário foi tida como exemplo, estímulo para quem precisa recomeçar os negócios, por isso as brigas geraram também certa frustração nos espanhóis. Há rumores de que o terceiro casamento de Álvarez tenha sido um dos estopins da crise, que veio efetivamente ao conhecimento público com a aproximação do aniversário de 150 anos da Vega Sicilia. O pai e os filhos organizaram festas faraônicas, cada qual em seus domínios, no mesmo dia! Nada mais constrangedor para os convidados.
Qualquer pessoa de bom senso se pergunta do que vale amealhar tanto dinheiro e poder, e ter de lidar com tamanhos riscos emocionais e financeiros. O fato é que o dinheiro e o poder podem vir, mas não necessariamente acompanhado de tramoias. E mais: é possível legar todo um império – afinal, morrer todos vão, uma hora ou outra – de forma justa e sem que a saúde financeira das empresas sofra avarias. É para isso que existe o planejamento sucessório, no âmbito das leis de sucessão e herança.
Pelo menos no Brasil, essas leis dispõem de instrumentos que, quando utilizados de forma adequada, dão conta de realizar a transmissão de patrimônio sem que este ou a família se esfacelem.
Vale lembrar que o processo sucessório só ocorre com o falecimento, mas seu planejamento pode ocorrer muito antes, e envolver o que na linguagem jurídica se chama sucessão patrimonial inter vivos. Se esse planejamento puder ser feito com tempo e sem pressões, melhor ainda.
Mesmo quando não envolve grandes fortunas, o planejamento sucessório pode ser a garantia de tranquilidade, especialmente num contexto em que o autor da herança tem filhos de casamentos diferentes. Todos os filhos são herdeiros e têm direitos iguais – inclusive filhos adotivos e os nascidos fora do casamento, desde que tenham a paternidade reconhecida.
Mas nem sempre os herdeiros têm habilidade de gestão. Outra situação bastante comum e que demanda racionalização na transmissão de bens é a existência de herdeiros que assumiram responsabilidades nos negócios da família, e aqueles que não se interessam pelos negócios.
Além de assegurar a governabilidade de empresas, reduzir o impacto tributário fiscais também é um dos objetivos do planejamento sucessório, com o qual é possível prever, por exemplo, necessidades como alterações nos contratos sociais das empresas, ou nos regimes de bens do casamento do detentor do patrimônio, ou mesmo nos casamentos de seus filhos.
O testamento é peça fundamental, dependendo da composição do patrimônio e da complexidade das relações familiares. Isso significa a observância da legítima e a aplicação dos instrumentos disponíveis na divisão da parte disponível.
A legítima é a parte da herança que corresponde a 50% do patrimônio e que, no Brasil, obrigatoriamente é destinada aos herdeiros necessários que, no caso, da Vega Sicilia, são os descendentes e o cônjuge. Qualquer planejamento sucessório que não preveja a legítima, e a divisão em partes iguais aos herdeiros, está fadado a causar mais problemas do que soluções depois que o titular vier a falecer. Em seguida, são analisadas as possibilidades de doações e a utilização de cláusulas testamentárias como, por exemplo, aquelas que impeçam venda de imóveis ou outros bens ou, ainda, cláusulas determinando usufruto, impenhorabilidade, incomunicabilidade etc.
Ultimamente, as leis societárias se aliam às leis sucessórias para alicerçar estruturas capazes de facilitar a transmissão de bens por meio de doações, diminuindo o patrimônio existente, o que, já de saída, facilita o inventário e minimiza gastos.
Essas doações tanto podem ocorrer em uma simples negociação inter vivos – um pai doa uma casa para seu filho, por exemplo – ou por meio de quotas, abrigadas sob uma estrutura jurídica específica, customizada, digamos assim, para contemplar as necessidades da família e da preservação do patrimônio. É nesse caso que os instrumentos do direito societário são utilizados. Essa estrutura que gerencia as quotas é uma empresa holding, nome emprestado da língua inglesa para determinar uma sociedade gestora de participações societárias.
Assim, com uma holding, uma família toda pode administrar um conglomerado de empresas. É o artigo 1.098 do Código Civil de 2002 que determina, com seus dois incisos, o que é uma sociedade controlada: “a sociedade de cujo capital social outra sociedade possua a maioria dos votos nas deliberações dos quotistas ou na assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores” e “a sociedade cujo controle esteja em poder de outra, mediante ações ou quotas possuídas por sociedades por esta já controladas”.
Portanto, em uma holding, é possível determinar o controle societário, dando poderes àqueles que realmente detêm a competência para tanto. Quanto ao doador, aquele a quem pertencia a integralidade do patrimônio, ele pode assegurar o controle e a renda da holding por meio de reserva de usufruto das participações doadas.
Com esse arcabouço jurídico, as possibilidades de que famílias e empresas se mantenham estáveis e em harmonia são bastante grandes. Obviamente, na Espanha também não devem faltar leis com esse objetivo, e esperemos que sejam aplicadas com discernimento. Dionísio, Baco e os amantes do vinho agradecerão.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires – UBA. É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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