Por David Roberto R. Soares da Silva
A Medida Provisória nº 1171, de 30.04.2023, alterou significativamente a forma como deverão ser tributados os lucros das empresas offshore utilizadas como veículo de investimentos no exterior. Tema constante de discussão diz respeito à quantificação do lucro tributável das offshore, especialmente aquele decorrente de aplicações financeiras no mercado internacional.
São várias as dúvidas e polêmicas que circulam sobre a MP 1171. Uma delas diz respeito ao lucro das empresas offshore que deverá ser oferecido à tributação automática ao final de cada ano-calendário, especialmente quando decorrente de investimentos financeiros feitos no exterior. É sobre isso que trataremos nesse artigo.
Inicialmente, vale lembrar um dos principais pilares da tributação da renda, que é o Art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN), que diz:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
A expressão de interesse, aqui, é “disponibilidade econômica ou jurídica”. A compreensão do seu alcance é essencial para delimitar o que pode e o que não pode ser alcançado pelo imposto de renda, incluindo aquele devido pela pessoa física detentora de empresa offshore.
Por renda economicamente disponível entende-se aquela já à disposição do contribuinte para utilização imediata como, por exemplo, juros e dividendos já pagos e aluguel recebido. Já renda juridicamente disponível é aquela que o contribuinte já tem direito, mas ainda não foi efetivamente recebida. Um exemplo que ajuda a entender o conceito: os juros sobre capital próprio (JCP) declarados pela empresa pagadora em dezembro de um ano, mas que somente serão recebidos no exercício seguinte. O direito ao recebimento do JCP existe desde o momento da sua declaração pela fonte pagadora (e assim é informado na declaração de IR), embora o seu recebimento ainda não tenha ocorrido.
Feitas essas considerações, tem-se que o IR somente pode atingir a renda econômica ou juridicamente disponível para o contribuinte, sob pena de ilegalidade.
Passando para a MP 1171, tem-se que ela estabelece que os lucros das empresas offshore serão tributados automaticamente se atendidos dois requisitos: (1) seja considerada entidade controlada, E (2a) esteja localizada em jurisdição com tributação favorecida (ou sob regime fiscal privilegiado); OU (2b) apure renda passiva superior a 20% da renda total.
Sem detalhar esses requisitos, tem-se que qualquer offshore detida por um residente no Brasil, localizada em paraíso fiscal (Bahamas, BVI, Cayman etc.) para investimento financeiro internacional cairá nessa regra. Nesses casos, qual deverá ser o lucro da offshore a ser oferecido à tributação automática no Brasil?
Antes de responder a essa pergunta, vale dizer que a partir de 2024, se convertida a MP 1171 em lei, a contabilidade das empresas offshore passará a ser obrigatória e não mais facultativa. É o que se conclui do Art. 4º da MP, que dispõe:
“Art. 4º (…)
§ 6º Os lucros das controladas de que trata este artigo serão:
I – apurados de forma individualizada, em balanço anual da controlada no exterior, elaborado com observância aos princípios contábeis, de acordo com o disposto na legislação.”
O uso do termo “serão” não dá margem à dúvida de que a offshore deverá preparar balanço anual. Essa obrigação é ainda mais explicitada na resposta 20 do Perguntas e Respostas à MP 1171, publicado pela Receita Federal[1]:
“20. Como deve ser calculado o lucro líquido das entidades controladas offshore a ser incluído na DAA a cada ano? Qual é o padrão contábil a ser adotado?
Resposta: O contribuinte deverá obter o dado do lucro anual das demonstrações financeiras da entidade offshore (lucro antes do imposto devido no exterior), preparadas segundo os princípios contábeis geralmente aceitos no Brasil, que seguem o padrão contábil internacional IFRS (…)“
As adequações ao padrão contábil internacional (IFRS), no Brasil, se dão por meio do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), entidade encarregada do estudo, preparo e emissão de documentos técnicos sobre procedimentos contábeis. Os seus pronunciamentos devem ser seguidos por contadores e auditores no preparo e revisão de demonstrações financeiras.
No que toca aos investimentos financeiros nas demonstrações contábeis, as regras contábeis internacionais (IFRS), adotadas pelo Brasil, vão no sentido de que a entidade deve classificar os ativos financeiros com base tanto: (a) nas características de fluxo de caixa contratual do ativo financeiro, como (b) no modelo de negócios da entidade para a gestão dos ativos financeiros. Essa sistemática está contida no IFRS 9, refletida no Brasil no CPC 48. O CPC 48 apresenta três métodos para classificação de ativos financeiros para fins contábeis, sendo eles:
- Custo amortizado (CA)
- Valor Justo por meio de Outros Resultados Abrangentes (VJORA)
- Valor Justo por meio do Resultado (VJRE ou VJR).
O CA deve ser adotado apenas se objetivo é manter ativos com o fim de receber fluxos de caixa contratuais ao longo da vida do instrumento, ou seja, juros. Neste método, a entidade adquire ativos para receber fluxos financeiros até o prazo final do instrumento gerador de renda. Em português: a entidade adquire um bond gerador de renda e o mantém até o final do prazo do investimento, sem vendê-lo, com o propósito apenas de receber os rendimentos. Se, por acaso, a política de investimentos considerar a possibilidade de vender esse ativo durante o seu prazo contratual, o método de avaliação não poderá ser o CA.
No VJORA, o objetivo da política de investimentos inclui tanto receber fluxos de caixa contratuais, quanto vender ativos financeiros.
O VJRE, por sua vez, deve ser adotado quando os objetivos não se enquadrem no CA ou no VJORA.
A adoção do método de classificação dos ativos financeiros é de extrema relevância e trará impactos significativos na apuração do lucro tributável da offshore para fins da MP 1171. Isso porque um dos corolários do IFRS9/CPC 48 é o de que o ativo financeiro deve ser reportado por seu valor justo nas demonstrações financeiras, exceto quando for necessário adotar o CA.
Valor justo significa valor de mercado. Assim, uma offshore que adquiriu um ativo financeiro por $1.000 e que, ao final do exercício, tenha valor de mercado (valor justo) de $ 1.200, precisará reportar essa valorização de $200 nas suas demonstrações financeiras. E é aí que o método de classificação do ativo será essencial para determinar o lucro do exercício da empresa a ser tributado no Brasil.
Usemos esses números como exemplo. Em 31.12.20X1, a offshore EnCon tinha o ativo XPTO registrado em sua contabilidade por $1000, sendo representado da seguinte forma:
Durante o ano de 20X2, o ativo XPTO gerou dividendos de $75 e se valorizou de $1.000 para $1.200. No mesmo período, a EnCon teve despesas bancária de $10.
A diferença entre o VJORA e o VJRE é com relação ao tratamento contábil a ser dado aos $200 de valorização do ativo durante o ano de 20X2. Enquanto o VJRE exige que essa valorização seja refletida no resultado da EnCon e, por consequência, integre o seu lucro (tributável no Brasil), o VJORA faz com que essa valorização seja refletida em uma conta de patrimônio líquido (denominada Outros Resultados Abrangente), sem influenciar o resultado e, portanto, sem influenciar o lucro da empresa.
Usando os números acima, o balanço da EnCon em 31.12.20X2, usando o VJRE, poderia ser representado da seguinte forma:
No VJRE, os $200 de valorização da XPTO são adicionados ao resultado como receita e irá integrar o lucro da EnCon de $265 ($200 de valorização + $75 de dividendos – $10 de despesas bancárias). Pela MP 1171, será esse lucro de $265 que deverá ser reportado para fins de IRPF no Brasil e informado na declaração de IR do contribuinte.
Note, que a EnCon ainda não vendeu esse ativo, sendo os $200 apenas uma valorização provisória, dado que é necessário fechar as demonstrações financeiras em algum momento. Mas essa é a consequência contábil de se adotar o VJRE, que terá impactos relevantes no lucro da EnCon e no IR a pagar do contribuinte que a detém.
Usando as mesmas premissas e valores, vejamos o impacto no balanço e resultado da EnCon se ela adotasse o VJORA:
Pelos números acima, o VJORA permite que a valorização (ou desvalorização) temporária de um ativo financeiro mantido em carteira não afete o resultado anual da offshore até que ele seja efetivamente alienado. É somente com a sua alienação ou baixa que o resultado será afetado e sujeito à tributação nos termos da MP 1171.
Embora não seja esse o propósito do IFRS9/CPC48, vale dizer que a adoção do VJORA se faz quase que obrigatória para fins tributários brasileiros em razão do que dispõe o Art. 43 do CTN, reproduzido no começo deste pequeno ensaio. O VJORA cai como um luva quando o assunto é disponibilidade da renda. A valorização dos ativos financeiros da offshore, enquanto não alienados, não representa disponibilidade econômica ou jurídica da renda e, por isso, não deveria afetar o lucro da offshore nem ser tributada no Brasil.
Isso mostra a importância da contabilidade da offshore a partir da MP 1171. De nada adiantará invocar o Art. 43 do CTN, se o método de classificação for o VJRE e o balanço da empresa alocar ao resultado a valorização dos ativos financeiros. O lucro apurado nessas demonstrações é o que deverá ser reportado na declaração de IR e tributado.
Dessa forma, aqueles que detêm empresas offshore para investimentos financeiros devem estar atentos quanto à forma de avaliação desse ativos na contabilidade a fim de que não tenham surpresas desagradáveis ao final do ano, caso a MP seja aprovada como enviada ao Congresso Nacional. Com a MP 1171, a contabilidade não apenas passará a ser obrigatória, como será vital para fins tributários da pessoa física que investe no mercado financeiro internacional por meio de empresa offshore. Daí a necessidade de assessoria contábil e tributária para a preparação e revisão adequada das demonstrações financeiras.
Por fim, se vale o comentário, o investimento financeiro internacional por meio de offshore não acabará. Muito pelo contrário. Se comparado ao investimento financeiro direto pela pessoa física, o investimento via offshore oferece muito mais vantagens e oportunidades, mas isso será tema de um outro artigo.
[1] Disponível em https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/perguntas-e-respostas
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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