Por David Roberto R. Soares da Silva
A edição extra do Diário Oficial da União de 28 de agosto publicou a aguardada Medida Provisória 1.184/2023 (MP 1184) que estende a tributação come-cotas aos fundos fechados exclusivos e restritos.
Os fundos fechados exclusivos (apenas um cotista) e restritos (direcionados a um grupo específico de investidores, como uma família) visam proporcionar uma estrutura semelhante aos fundos tradicionais abertos ao público, porém com uma carteira de investimentos personalizada conforme o perfil de risco e características do investidor. Eles são voltados para grandes investidores, pois custos como gestão, administração, auditoria e taxas de registro podem ser excessivamente elevados para capitais menores. Geralmente, o capital inicial mínimo para abrir um fundo exclusivo ou restrito é de aproximadamente R$ 10 milhões.
Em linhas gerais, os fundos de investimento podem ser abertos – com aportes e resgates livres –, ou fechados – com prazo de vencimento e resgates pré-programados. As principais diferenças entre os dois tipos de fundos são a liquidez e a tributação: fundos abertos têm maior liquidez e sofrem tributação do imposto de renda retido na fonte (IRRF) “come-cotas” semestral, enquanto os fundos fechados não se sujeitam ao “come-cotas”, pois sua tributação ocorre somente no resgate. Por outro lado, as possibilidades de aportes e resgates são mais limitadas.
Mas vale notar que as alíquotas aplicáveis aos fundos abertos e fechados são as mesmas, quais sejam:
A tributação dos fundos fechados segue as regras aplicáveis aos fundos de investimento em geral. A tributação ocorre sobre o rendimento dos investimentos, e não sobre o valor aplicado. Excluídos os fundos de investimento em ações (FIA), a incidência do IRRF varia conforme o prazo de resgate das aplicações, a saber[1]:
Alíquota | Prazo |
22,5% | Aplicações com prazo de até 180 dias |
20% | Aplicações com prazo de 181 até 360 dias |
17,5% | Aplicações com prazo de 361 até 720 dias |
15% | Aplicações com prazo superior a 720 dias |
O que os distingue é a existência ou não da antecipação do pagamento por meio do come-cotas. O “come-cotas” foi criado em 2004[2] e é um sistema de tributação antecipada que afeta os fundos de investimento abertos no Brasil. Ele recebe essa denominação, pois a tributação ocorre semestralmente, incidindo diretamente sobre as cotas do fundo, reduzindo o número de cotas detidas pelo investidor. A tributação antecipada ocorre nos meses de maio e novembro, e o IRRF é recolhido às alíquotas de 15% ou 20% a depender da composição dos ativos do fundo (longo ou curto prazo, respectivamente). Os efeitos financeiros do “come-cotas” em comparação aos fundos fechados sem “come-cotas” são principalmente relacionados à rentabilidade, ao efeito dos juros compostos e planejamento tributário.
Nova regra geral de tributação dos fundos fechados
Com a edição da MP 1184, a maioria dos fundos fechados passa a se sujeitar às mesmas regras do come-cotas a partir de 2024. De acordo com a MP 1184, será aplicada a alíquota de 15% e de 20% aos fundos fechados de longo e curto prazo, respectivamente, no último dia dos meses de maio e novembro[3]. O diferencial de tributação entre 15% ou 20% do come-cotas e a alíquota efetivamente devida, conforme o prazo da aplicação, será recolhida pela instituição custodiante do fundo fechado quando da distribuição de rendimentos, amortização, resgate ou alienação de cotas[4].
Nesse ponto, vale ressaltar o termo “alienação”, contido na MP 1184. Diferentemente dos fundos abertos, uma das vantagens dos fundos fechados é permitir o planejamento patrimonial e sucessório por meio de doação das cotas, inclusive com a imposição de cláusulas restritivas (impenhorabilidade, incomunicabilidade, inalienabilidade), assim como reserva de usufruto e reversão.
A doação pode ser entendida como uma espécie de alienação e, portanto, a futura doação de cotas de fundos fechados – a partir de 2024 – poderá ensejar a tributação integral dos rendimentos acumulados, descontadas eventuais retenções via come-cotas. Ou seja, a doação de cotas poderá ser vista como uma alienação das cotas do fundo. A ser confirmada essa situação, os fundos fechados perderão a sua atratividade duplamente: seja pela incidência do come-cotas semestral, seja pelo ‘pedágio’ a ser pago na doação de suas cotas para fins de planejamento patrimonial e sucessório.
O custo de aquisição das quotas, dividido pelas cotas da mesma classe, corresponderá, basicamente, ao preço pago por sua aquisição acrescido do valor patrimonial que já tiver sido tributado anteriormente.
Outro aspecto importante da MP 1184 é a exigência de que o titular das cotas, quando da sua alienação, promova a entrega de recursos financeiros ao administrador do fundo para fazer frente ao recolhimento do IRRF[5]. Eis aí outra distinção com relação aos fundos abertos, para os quais essa exigência não existe, dado que a alienação das cotas é feita pelo próprio administrador. No caso dos fundos fechados, a alienação ocorre entre particulares – como uma doação entre pais e filhos, por exemplo – daí a necessidade da provisão de recursos ao administrador. Ou seja, mais uma desvantagem para o fundo fechado. Assim, se um pai quiser doar cotas de seu fundo fechado aos filhos, deverá entregar recursos financeiros ao administrador do fundo para o pagamento do imposto de renda.
A MP 1184 dispõe que o administrador poderá dispensar essa entrega de recursos, indicando que se o fundo tiver recursos financeiros poderá utilizá-los para o pagamento do IRRF. No entanto, vale notar que estará vedada a transferência de cotas caso o administrador não possua os recursos necessários para o pagamento do imposto no prazo legal.
Quanto às perdas apuradas na amortização, resgate ou alienação de cotas, elas poderão ser compensadas, exclusivamente, com ganhos auferidos nas cotas do mesmo fundo, ou de outro fundo administrado pela mesma pessoa jurídica, mas desde que constem de controles e registros mantidos pelo administrador [6].
Fundos excluídos do come-cotas
Os seguintes fundos não se sujeitarão ao regime do come-cotas quando forem enquadrados como entidades de investimentos e seguirem as demais regras estabelecidas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM[7]:
I – Fundos de Investimento em Participações – FIP;
II – Fundos de Investimento em Ações – FIA; e
III – Fundos de Investimento em Índice de Mercado – ETF, com exceção dos ETFs de Renda Fixa.
Esses fundos estarão sujeitos a uma alíquota de IRRF de 15% incidente na data de distribuição de rendimentos, amortização, resgate ou alienação[8]. O mesmo tratamento será dado aos fundos de fundos que mantenham, no mínimo, 95% de sua carteira nesses três tipos de fundos[9].
Entidades de investimento são os fundos que tenham estrutura de gestão profissional, no nível do fundo ou de seus cotistas quando organizados como fundos ou veículos de investimentos, no Brasil ou no exterior, representada por agentes ou prestadores de serviços com poderes para tomar decisões de investimento e desinvestimento de forma discricionária, com o propósito de obter retorno por meio de apreciação do capital investido, renda ou ambos, na forma a ser regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional – CMN[10].
No caso dos FIA, a MP 1184 os conceitua como aqueles que possuam carteira composta por, ao menos, 67% de ações ou ativos a elas equiparados, listando esses ativos no Art. 5º, § 1º.
As definições de FIP e ETF, para fins de exclusão do come-cotas são disciplinadas nos Arts. 4º, §§ 6º da MP 1184, respectivamente.
Na hipótese desenquadramento de FIA, FIP ou ETF, os seus rendimentos passarão ao regime de tributação semestral do come-cotas à alíquota de 15%l[11].
Regras de transição
Como tanto se temia, a MP 1184 prevê a tributação do estoque de rendimentos dos fundos fechados à alíquota de 15%[12], devendo o cotista prover os recursos necessários para o pagamento do imposto, sendo possível a dispensa pelo administrador se houver recursos no fundo[13]. A parcela tributada passará a compor o custo de aquisição do fundo para fins de futuras incidências, ou seja, não haverá tributação adicional.
Na prática, cria-se uma tributação excepcional: ou invés da aplicação da tabela progressiva de 15% a 22,5% (veja quadro acima) para o estoque de rendimentos, a MP 1184 cria uma tributação especial, de uma única vez, à alíquota de 15%. Esse imposto deverá ser recolhido à vista até 31 de maio de 2024.
No entanto, a MP 1184 permite o parcelamento desse IRRF em até 24 parcelas mensais e sucessivas, mas não necessárias em parcelas iguais. Ou seja, o contribuinte poderá realizar o pagamento em parcelas desiguais, desde que nenhuma delas seja inferior a 1/24 do imposto devido. Sobre cada parcela incidirão juros SELIC e de 1% no mês em que o pagamento for realizado[14]. No entanto, em caso de amortização, resgate ou alienação de cotas antes do fim do pagamento das parcelas, o saldo ainda não pago do IRRF será antecipado para a data da realização.
Vale o alerta de que falta de pagamento do IRRF nos moldes previstos na MP 1184 impedirá o fundo de fazer distribuições ou repasses ao cotista e até mesmo realizar novos investimentos[15].
Como forma de antecipar a arrecadação do IRRF para 2023, a MP 1184 (Art. 12) permite a antecipação do pagamento do imposto sobre o estoque de rendimentos, em duas etapas, à alíquota de 10%.
Na primeira etapa, deverá ser recolhido o IRRF sobre o estoque de rendimentos apurados até 30.06.2023. Esse imposto poderá ser pago em 4 parcelas iguais, mensais e sucessivas com vencimento em 29.12.2023, 31.01.2024, 29.02.2024 e 29.03 2024. A segunda etapa inclui o pagamento do IRRF sobre os rendimentos apurados entre 01.07.2023 e 31.12.2023, que deverá ser recolhido em parcela única até 31.05.2024.
Já há notícias no Congresso Nacional para a redução dessa alíquota especial de 10% para 6%, dado que esse era o acordo firmado no governo anterior quando se considerada a tributação dos fundos fechados. É bem possível que o Congresso reduza essa alíquota em breve.
Outras regras
A MP 1184 ainda estabelece outras regras relacionadas com a nova tributação, como fusão, cisão, incorporação e transformação de fundos a partir de 01.01.2024; responsáveis pela retenção do IRRF; fundos detidos por não residentes; extensão das regras aos clubes de investimento; entre outras.
Destaque-se, ainda, a disposição com relação aos fundos gravados com usufruto, muito comuns em planejamento patrimonial e sucessório. A MP 1184 estabelece que o tratamento tributário (incidência do IRRF) levará em conta o beneficiário do rendimento, normalmente, o doador-usufrutuário, e não o titular da cota (donatário-nu-proprietário)[16].
Outro ponto importante diz respeito aos fundos com classes distintas de cotas, com diferentes direitos e patrimônio segregado. Para fins de tributação, cada classe de cotas será considerada como um fundo específico[17].
Por fim, a MP expressamente exclui do novo regime os seguintes fundos de investimento, os quais seguirão os regimes próprios de tributação:
- os Fundos de Investimento Imobiliário – FII e os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro;
- os investimentos de residentes ou domiciliados no exterior em fundos de investimento em títulos públicos de que trata o art. 1º da Lei nº 11.312, de 27 de junho de 2006;
- os investimentos de residentes ou domiciliados no exterior em FIPs e Fundos de Investimento em Empresas Emergentes – FIEE de que trata o art. 3º da Lei nº 11.312, de 2006;
- os Fundos de Investimento em Participações em Infraestrutura – FIP-IE e os Fundos de Investimento em Participação na Produção Econômica Intensiva em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação – FIP-PD&I de que trata a Lei nº 11.478, de 29 de maio de 2007;
- os fundos de investimento de que trata a Lei nº 12.431, de 24 de junho de 2011 (debêntures incentivadas);
- os fundos de investimentos com cotistas exclusivamente residentes ou domiciliados no exterior, nos termos do disposto no art. 97 da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014;
- os ETFs de Renda Fixa de que trata o art. 2º da Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014.
Com relação ao FII e Fiagro, é de se notar que a MP 1184 (Art. 24) exige o cumprimento de certos requisitos para para que o fundo não seja incluído na sistemática do come-cotas. São eles a necessidade (1) de que as cotas sejam admitidas à negociação exclusivamente em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado, bem como sejam efetivamente negociadas em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado, e (2) possuam, no mínimo, 500 cotistas. Já notícias veiculadas na mídia de que cerca de 30% dos FII com informações divulgadas ao mercado possuem menos de 500 cotistas. Isso deve servir de alerta aos investidores para que verifiquem o cumprimento desses requisitos pelos fundos em que investem. A consequência pelo não cumprimento desses requisitos é transformar os rendimentos isentos desses fundos em rendimentos sujeitos ao come-cotas semestral.
Vale notar uma omissão quase gritante na MP 1184: os fundos de recebíveis (FIDCs) fechados, que se tornaram uma fonte relevante de financiamento. Antes da MP, enquanto os FIDCs abertos se sujeitavam ao come-cotas, os FIDCs fechados somente era tributados quando do resgate. A MP 1184 não cria nenhuma regra específica sobre os FIDCs fechados, havendo o risco de passarem a se sujeitar ao come-cotas em 2024 se o Congresso não fizer modificações durante o processo legislativo.
Considerações finais
Quase simultaneamente à edição da MP 1184, há notícias de que o Poder Executivo assinava projeto de lei para criar a tributação automáticas dos investimentos no exterior e empresas offshore, em substituição às regras estabelecidas pela Medida Provisória 1171/2023 e que foi rejeitada pelo Congress Nacional nesse aspecto.
O projeto de lei possui tramitação própria e mesmo com urgência constitucional poderá não ser apreciado no prazo pretendido pelo Poder Executivo. Caso não haja consenso ou vontade política do Legislativo para tributar as empresas offshore, e essa tributação não ocorra, é grande a possibilidade de recursos investidos no Brasil nos fundos fechados migrarem para outros países.
Em outras palavras, se não houver sincronia na criação da tributação das offshore e aprovação da MP 1184, e somente sobreviver essa última, deixando-se de tributar os investimentos no exterior, há uma séria ameaça ao mercado financeiro nacional. Isso porque será mais vantajoso ao investidos de fundo fechado – por natureza mais sofisticado e endinheirado – pagar o “imposto pedágio” de 10%, liquidar seus investimentos e os transferir ao exterior, ainda mais se não passar a tributação das empresas offshore.
Isso será, certamente, um baque para o mercado financeiro e de capitais nacional, podendo sofrer com significativas vendas de ativos locais, com a apreciação do dólar, para fazer frente à remessa de recursos ao exterior. A ver…
[1] Lei nº 11.033/2005, Art. 1º.
[2] Lei nº 10.892/2004, Art. 3º.
[3] MP 1184, Art. 2º, inciso I.
[4] MP 1184, Art. 2º, § 1º.
[5] MP 1184, Art. 2º, § 6º.
[6] MP 1184, Art. 2º, § 7º e 8º.
[7] MP 1184, Art. 3º.
[8] MP 1184, Art. 8º.
[9] MP 1184, Art. 9º.
[10] MP 1184, Art. 7º.
[11] MP 1184, Art. 10.
[12] MP 1184, Art. 11.
[13] MP 1184, Art. 11, § 3º.
[14] MP1184, Art. 11, § 7º.
[15] MP 1184, Art. 11, § 9º.
[16] MP 1184, Art. 20.
[17] MP 1184, Art. 21.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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