Por Ana Luiza Naback
Embora seja comum afirmar que a união estável se assemelha ao casamento, algumas questões ainda merecem atenção e o julgamento do Recurso Especial nº 1.988.228-PR, pelo STJ, mostra isso.
O caso comporta a história de um casal que vivia em união estável regida pelo regime de separação total de bens, regime esse eleito através de contrato particular celebrado entre si. Tendo um do casal contraído dívidas e sido executado por elas, uma das medidas constritivas traduziu-se na penhora dos itens que guarneciam a residência do casal.
O outro companheiro, não executado, opôs embargos de terceiro no processo de execução alegando que, como viviam em união estável pela separação total de bens e os bens penhorados foram comprados exclusivamente por ele e não pelo companheiro endividado, deveria cessar a medida constritiva, promovendo-se a liberação dos bens.
Em outras palavras, o que o companheiro não executado queria era a confirmação de que, no regime da separação de bens que regia a relação do casal, os seus bens – particulares – não fossem penhoras por dívidas contraídas pelo outro companheiro.
Por mais incrível que pareça, as alegações não foram aceitas pelo Judiciário e a penhora foi mantida. Mas por que isso se a separação total de bens também significa separação (total?) das dívidas?
De fato, no casamento, a adoção do regime da separação total de bens exige a lavratura de escritura pública de pacto antenupcial perante cartório de notas e com registro no cartório de imóveis do local de domicílio do casal.
Para a união estável, o Código Civil não exige nenhuma formalidade para a escolha do regime de bens na união estável, podendo ser feito por meio de contrato particular ou escritura pública lavrada em cartório de notas. No entanto, deixar de formalizar a união estável por escritura pública pode trazer alguns reveses, como o do Recurso Especial nº 1.988.228-PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Inclusive, a também comum opção de se registrar o contrato particular em cartório de títulos e documentos pode não representar muita segurança no que toca ao conhecimento e à oponibilidade a terceiros, como sinalizou o STJ apesar de não ter enfrentado diretamente essa questão.
Outro ponto diz respeito à impossibilidade de o registro do contrato particular gerar efeitos retroativos. Em outras palavras, depois de iniciada a execução da dívida de um dos companheiros, eles correram para registrar no cartório o contrato que celebraram há alguns anos, visando, com isso, conferir publicidade para o regime de bens que haviam escolhido. Só que foi tarde demais.
Como a escolha do regime de bens, em tese, não retroage, do início da união estável até o registro do contrato de convivência, o STJ entendeu que o relacionamento do casal perante a sociedade (incluindo credores) foi regido pela comunhão parcial de bens, justificando a presunção de corresponsabilidade da dívida contraída e executada. Dessa forma, lícita era a penhora dos bens da residência do casal que foram comprados por apenas um dos conviventes. Afinal, na comunhão parcial presumem-se partilhados não só os bônus, mas também os ônus.
Esses dois pontos analisados no julgamento desse Recurso Especial reforçam a necessidade de ligar o alerta para os relacionamentos caracterizados como união estável, levando os companheiros a refletirem sobre as consequências dessa situação de fato no mundo jurídico e econômico. A simplicidade de como o relacionamento se desenrola e vai gerando seus efeitos sempre cede espaço diante das consequências, que não são tão simples assim.
Aliás, não é à toa que o Enunciado 641, da VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF) bate nessa tecla ao dizer que “a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável”.
Mas isso “nós” já sabemos ou ouvimos falar com mais frequência. Agora, o curioso do caso analisado no STJ está nas entrelinhas, nas regras da responsabilidade pessoal e solidariedade ainda pouco exploradas e que são, na verdade, um universo de opções, principalmente em termos de planejamento matrimonial.
De acordo com a Ministra Nancy Andrighi, do STJ, o contrato entre os conviventes elegendo o regime da separação total de bens de fato não poderia ser oposto aos terceiros ante a ausência de formalidade e publicidade do ato. Contudo, esse mesmo contrato cria, dentro da esfera do casal, responsabilidade pessoal e patrimonial.
Vale dizer, mesmo que os bens penhorados pelo terceiro digam respeito a apenas um dos companheiros e que a dívida que deu origem a essa penhora seja do outro companheiro, nada impede que aquele que foi lesionado em seu patrimônio busque a reparação frente ao devedor, justamente porque há um ajuste entre eles, desde o início, de que a relação se pautaria na separação de bens. Haveria, portanto, nesse caso, um regime de bens para a sociedade e outro regime para o casal.
O Código Civil traz normas cogentes no que se refere aos efeitos dos regimes de bens, principalmente visando a proteção de terceiros estranhos à relação. Mesmo sendo essas regras inafastáveis por vontade das partes (seja através de pacto antenupcial ou de escritura pública de convivência), nada obsta que o casal tutele, entre si, como serão resolvidos os seus próprios conflitos, como serão repartidas as responsabilidades e como arcará com as consequências de seus atos dentro do universo que só lhe diz respeito, pautado na dinâmica da responsabilidade pessoal e dos contornos da solidariedade civil.
Uma coisa é o mundo lá fora, outra, o aqui de dentro. E eles não são excludentes. Basta se atentar e planejar bem. Afinal, “o combinado não sai caro” e só o Código Civil tem 2.046 possibilidades a serem exploradas.
A lição que fica aos companheiros que regularam seu relacionamento por meio de contrato particular é que, aos olhos do mundo e da sociedade, o seu regime de bens será o da comunhão parcial de bens, ainda que o seu contrato estabeleça outro regime. A consequência jurídica dessa situação é que os bens de ambos os companheiros podem responder pelas dívidas contraídas por apenas um deles, independentemente do que diga o seu contrato particular não registrado. Quem sabe não seja hora de revisitar essa questão?
Ana Luiza Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados em Minas Gerais.
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