Por David Roberto R. Soares da Silva
Desde a aprovação do PL 4173, que trata, entre outras coisas, da tributação dos investimentos no exterior e dos fundos exclusivos, muito se tem discutido sobre se a novas regras exigirão que os lucros não realizados pelas empresas offshore deverão ser tributados automaticamente todos os anos.
O debate sobre a tributação dos lucros não realizados de empresas offshore ganhou força com a aprovação do relatório do senador Alessandro Vieira, que rejeitou a Emenda nº 6-U do senador Carlos Portinho, que visava esclarecer o tema. Na sua rejeição, o senador Alessandro Vieira alegou que a não tributação dos lucros não realizados seria possível apenas se o contribuinte adotasse a sistemática de transparência fiscal, passando a declarar individualmente os ativos financeiros detidos pela offshore.
Já tive a oportunidade de tratar do assunto ao analisar como as regras contábeis tratam a matéria (https://lnkd.in/dA6rHsUp), valendo reiterar, apenas, que nem a legislação em vigor, e tampouco o PL 4173, autorizam a tributação do lucro não realizado. Mas não é esse o objetivo desse artigo.
Pretendo aqui sair da análise estática para uma abordagem mais dinâmica, mostrando não apenas a impossibilidade, como o absurdo e as consequências adversas ao fisco dessa ‘interpretação’.
Comecemos explicando o que é o lucro não realizado, especialmente no tocante aos instrumentos financeiros, objeto de preocupação daqueles que fazem investimentos internacionais por meio das offshore. Pois bem, ele é o lucro ‘provisório’ que aparece ao final do exercício, mas que não se concretizou, pois o ativo subjacente não foi vendido.
Imaginemos que no começo de 2023 a offshore de Carlos compre $100 mil em ações da empresa ALL-IN Inc. negociadas em uma bolsa no exterior. Inicialmente, a empresa registrará essas ações em sua contabilidade por $ 100 mil. Durante o ano de 2023 as ações se valorizam tremendamente e chegam a 31.12 daquele ano valendo $ 180 mil. A offshore mantém as ações e não as vende. Nas demonstrações financeiras da offshore, a conta do ativo passará de $ 100 mil para $180 mil, devendo os $80 mil serem alocados em algum lugar (conta de patrimônio líquido ou resultado).
Independentemente do critério que se adote para a contrapartida, o fato é que os $ 80 mil de valorização são o que chamamos de lucro não realizado. Ele aparece nas demonstrações financeiras porque é necessário levantar um balanço no final do ano. Apenas isso. A offshore ainda não ganhou nada, pois não vendeu as ações.
Feitas essas considerações iniciais, passemos a refletir sobre essa situação de uma forma mais dinâmica, considerando o que diz o PL 4173.
- Lucro não realizado em 31.12.2023
O Art. 6º do PL 4173 diz o seguinte:
Art. 6º Serão tributados no momento da efetiva disponibilização para a pessoa física residente no País, na forma prevista no art. 2º desta Lei:
I – os lucros apurados até 31 de dezembro de 2023 pelas controladas no exterior de pessoas físicas residentes no País, enquadradas ou não nas hipóteses previstas no § 5º do art. 5º desta Lei.
O PL 4173 não fala em lucros realizados ou não realizados, mas em lucros. Adotando a interpretação de que a partir de 2024 os lucros, mesmo que não realizados, devem ser tributados anualmente, então o lucro não realizado, apurado em 31.12.2023 somente deve ser tributado quando efetivamente disponibilizado, nos termos do Art. 6º.
Voltemos à offshore de Carlos que, em 31.12.2023, possui $ 80 mil de lucros não realizados, e façamos algumas considerações.
Se a offshore vender as ações em maio de 2024 pelo mesmo preço que tinha em 31.12.2023, ela terá um lucro de $80 mil. Mas como esse lucro não realizado de $80 mil já constava do balanço de 31.12.2023, tem-se que, mesmo realizado em 2024, ele não poderia ser tributado automaticamente em 31.12.2024, pois se refere a um lucro apurado em balanço de 31.12.2023 para o qual o PL 4173 estabelece a tributação somente quando seja efetivamente distribuído.
Agora consideremos o cenário em que as ações sejam vendidas por $160 mil em 2024, ou seja, com lucro, mas inferior àquele apurado no balanço de 31.12.2023. Também aqui não haveria que se falar em tributação do lucro realizado de $60 mil em 2024, pois ele já constava como lucro não realizado de $80 mil no balanço anterior de 31.12.2023.
Para manter a coerência com a regra do Art. 6º do PL 4173, esse lucro – ainda que menor – deveria ser tratado como lucro pré-2024, que somente poderia ser tributado na efetiva distribuição (Art. 6º). O problema aqui é agravado pelo fato de o PL 4173 não determinar o que fazer com a diferença de $20 mil entre o lucro não realizado (reportado em 31.12.2023) e aquele realizado em 2024.
Outra situação: a offshore vende as ações por $220 mil, realizando um lucro de $ 120 mil. Ora, desse lucro, $80 mil já constavam como lucro (não realizado) de 31.12.2023 e, em tese, somente poderiam ser tributados quando efetivamente distribuídos. Assim, somente $40 mil é que poderiam ser tributados automaticamente em 31.12.2024.
Por fim, consideremos a situação em que as ações da ALL-IN sejam vendidas em 2024 por $70 mil, ou seja, com prejuízo efetivo de $30 mil. A despeito do lucro não realizado em 31.12.2023, o que se terá em 31.12.2024 é uma perda realizada de $ 30 mil. Para ela, diz o § 14 do Art. 5º do PL 4173:
Art. 5º (…)
§ 14. Poderão ser deduzidos do lucro da controlada, direta ou indireta, os prejuízos apurados em balanço, pela própria controlada, a partir da data em que preencher os requisitos de que trata o § 1º deste artigo, desde que sejam referentes a períodos a partir de 1º de janeiro de 2024 e anteriores à data da apuração dos lucros.
Ora, nesse caso, não haveria lucro tributável em 31.12.2024 em razão do prejuízo realizado.
Veja que a sistemática de tributação do lucro de 31.12.2023 para o momento da efetiva distribuição exigirá que esse lucro seja mantido em um controle auxiliar para excluí-lo da tributação automática a partir de 2024. E isso valerá também para o lucro não realizado em 31.12.2023, assumindo que se o lucro não realizado em 2024 deve ser tributado anualmente, aquele anterior a 2024 somente o será na efetiva distribuição.
Nesse curto exemplo, percebe-se a incoerência da tributação do lucro não realizado. No caso, estamos falando daquele lucro não realizado apurado em balanço de 31.12.2023, que será o ponto de partida para a tributação a partir de 2024. Mas não é só.
- Lucro não realizado em 2024
Agora, assumamos que a offshore de Luiza compre um ativo financeiro por $150 mil em 2024 e que esse ativo se valorize para $250 mil no final do ano. A offshore manteve o ativo durante todo o ano de 2024, ou seja, estamos falando novamente de lucro não realizado pós-2024 no valor de $100 mil.
Na ‘coerência’ de sua tributação automática anual do lucro não realizado, temos que, em abril de 2025, Luiza deverá pagar $15 mil de IR no Brasil sobre o ‘lucro’ de $100 mil. Pois bem, o inciso IV do § 10 do Art. 5º do PL 4173 dispõe que, nesse caso, Luiza deverá incluir na sua DAA um ‘crédito de dividendo a receber’ equivalente ao lucro (não realizado, diga-se) já tributado. Vejamos:
Art. 5º (…)
§ 10. Os lucros das controladas enquadradas nas hipóteses previstas no § 5º deste artigo serão:
IV – incluídos na DAA, na ficha de bens e direitos, como custo de aquisição de crédito de dividendo a receber da controlada, direta ou indireta, com a indicação do respectivo ano de origem.
Se a offshore vender esse ativo em 2025 pelo mesmo valor de aquisição de $250 mil, não haverá qualquer problema e Luiza poderá distribuir os $100 mil sem o pagamento adicional de IR por força do que dispõe o § 11 do Art. 5º:
§ 11. Na distribuição dos lucros das controladas enquadradas nas hipóteses previstas no § 5º que já tiverem sido tributados na forma prevista no § 10 deste artigo para a pessoa física controladora, deverão ser indicados na DAA a controlada e o ano de origem dos lucros distribuídos, os quais deverão reduzir o custo de aquisição do crédito do dividendo a receber, pelo valor originalmente declarado em moeda nacional, e não serão tributados novamente.
Se o ativo for vendido em 2025 por $260 mil (lucro efetivo de $ 110 mil), a situação não apresentará problemas, pois $100 mil já terão sido tributados, devendo a offshore tributar o excedente de $10 mil ao final de 2025.
Todavia, o que ocorrerá se o ativo for vendido por $195 mil, ou seja, com lucro de $45 mil, abaixo, portanto, do lucro (não realizado) tributado em 31.12.2024?
Por certo, não haverá nova tributação, pois o lucro não realizado já tributado no ano anterior era superior ($100 mil). Mas Luiza tem registrado na sua DAA um crédito de dividendo a receber de $100 mil, mas só terá direito a receber $45 mil, pois será esse o lucro efetivamente realizado. Embora não sofra nova tributação, ao final ela terá sofrido uma tributação de 33%, pois terá pagado $15 mil (15% sobre lucro não realizado de $100 mil) para um lucro efetivo de $45 mil.
Não há dúvida de que se está diante de uma tributação confiscatória claramente inconstitucional. Do lucro efetivo de $45 mil, Luiza terá desembolsado $15 mil de IR, ficando com $30 mil para si.
Além dessa situação claramente confiscatória, fica a dúvida sobre o que acontecerá com o crédito de dividendo.
Luiza terá $100 mil de crédito de dividendo a receber, informado em sua DAA de 2024, mas só terá caixa de $30 mil de dividendos. Depois de pagar esses $30 mil, o que acontecerá com o crédito excedente de $70 mil informado em sua DAA de 2024? Ele deverá ser cancelado?
O PL 4173 não trata dessa situação, sendo mais uma razão para concluir pelo absurdo da tributação do lucro não realizado. Se fosse essa a intenção, o PL 4173 deveria tratar dessa matéria.
Por fim, o que aconteceria se a offshore de Luiza vendesse o ativo financeiro em 2025 por $160 mil? Ela teria desembolsado $15 mil de IR em 2024, mas ao final teria tido um lucro de $10 mil (custo de aquisição = $150 mil). Ou seja, o imposto pago no ano anterior terá sido mais de 100% do lucro efetivo. Na prática, descontando os $15 mil de IR já pago, em 2025 ela terá menos patrimônio: $160 mil – $15 mil = $145 mil.
Será que a Receita Federal, o ministro Fernando Haddad, ou o senador Alessandro Vieira vão devolver o IR pago a maior para Luiza?
- Imposto pago no exterior
Outra incongruência na “tese” da tributação do lucro não realizado diz respeito ao aproveitamento do imposto pago no exterior pela offshore. Vejamos o que dispõe o § 15 do Art. 5º do PL 4173:
§ 15. Na determinação do imposto devido, a pessoa física poderá deduzir, na proporção de sua participação nos lucros da controlada, direta ou indireta, o imposto sobre a renda que:
I – seja devido no exterior pela controlada e pelas suas investidas não controladas;
II – incida sobre o lucro da controlada e das suas investidas não controladas ou sobre os rendimentos por elas apurados no exterior, quando tais lucros e rendimentos tenham sido computados no lucro da controlada tributado na forma prevista neste artigo;
III – tenha sido pago no país de domicílio da controlada ou em outro país no exterior;
IV – não supere o imposto devido no País sobre o lucro da entidade controlada que tenha sido computado na base de cálculo do IRPF; e
Voltemos ao caso da offshore de Luiza, que pagou IR ($15 mil) sobre o lucro não realizado ($100 mil) em 2024. Ela vendeu o ativo em 2025 apurando um lucro de $50 mil (venda por $200 mil e custo de aquisição de $150 mil). Assumamos que no país de venda do ativo, tenha havido uma retenção de imposto de 15%, ou seja, $7.500.
Se analisarmos as disposições do § 15 sob a ‘tese’ da tributação automática do lucro não realizado, veremos que o IR de $7.500 jamais poderá ser utilizado pela offshore de Luiza, pois:
- O lucro de $100 mil da offshore terá sido tributado em 2024 quando ainda não havia sido pago o IR no exterior de $ 7.500;
- O IR de $7.500 pago no exterior em 2025 não poderá ser utilizado em 2025, pois o lucro de $50 mil de 2025 (realizado), já foi tributado em 2024 como lucro não realizado e não poderá ser computado novamente em 2025 sob pena de dupla tributação (não se pode tributar o lucro não realizado e o realizado). Assim, o disposto no inciso II impedirá a utilização do IR de $7.500.
Se a offshore de Luiza não tiver outro lucro em 2025, tem-se que os $7.500 pagos no exterior se perdem e não poderão ser utilizados em exercícios futuros.
Assim, ao final Luiza terá pagado $15 mil de IR no Brasil em 2024 e $7.500 no exterior em 2025, para um lucro efetivo de $ 50 mil, ou seja, 45% de imposto.
- Algumas conclusões preliminares
Os exemplos acima foram utilizados com base na redação do PL 4173 aprovado pela CAE do Senado Federal.
Independentemente dos argumentos jurídicos que suportam o entendimento de que os lucros não realizados não devem ser tributados de forma automática, tem-se que ao analisar a questão de forma dinâmica, como são as demonstrações financeiras, chega-se à conclusão de que essa tributação seria, na prática, impossível.
Não bastaria a tributação pura e simples dos lucros não realizados. O PL 4173, e a lei dele decorrente, deveria prever todas as consequências adicionais decorrentes dessa tributação, contemplando o tratamento a ser dado para situações como aquelas descritas nessas breves linhas.
De fato, tributar o lucro não realizado em um ano exige regulamentação (em lei) sobre como deve ser feita a sua exclusão nos anos subsequentes, quando esse lucro for, de fato, realizado. Tributado novamente não será, mas não há nada no PL 4173 que diga o que deve ser feito. E, ainda, qual deve ser o tratamento do imposto pago no Brasil sobre lucros não realizados quando a realização ocorrer por valor inferior?
E mais. Se o PL 4173 foi detalhista a ponto de dizer que os lucros tributados devem ser informados como créditos de dividendos a receber na DAA, não faz sentido silenciar sobre o que acontece com esses dividendos se o lucro realizado for menor do que ele…
Silenciando o PL 4173 sobre todas as consequências advindas da tributação de lucros não realizados, tem-se que, com base as normas legais e contábeis vigentes, somente há uma única conclusão possível: a de que a tributação das offshore deve ser feita exclusivamente com base no lucro realizado. Ao adotar essa abordagem, temos que o texto do PL 4173 já basta para a sua plena aplicação, não havendo necessidade de qualquer regulamentação adicional, como seria o caso da tributação dos lucros não realizados.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais, do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
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