Por Giovana Novaes
Com o avanço da tecnologia e a crescente integração de nossas vidas no mundo digital, torna-se essencial refletir sobre o destino do patrimônio intangível após o falecimento, seja ele imbuído de valor econômico ou afetivo.
Esse legado – que inclui exemplos como dados pessoais, contas digitais, fotos, arquivos, perfis pessoais em redes sociais – é o que define a chamada “herança digital”. Significa que esse acervo não abrange apenas ativos digitais de valor econômico, mas também engloba bens de valor inestimável, relacionados à preservação da memória do falecido.
Embora o art. 1.791 do Código Civil estabeleça que a herança é um todo unitário e indivisível, é preciso reconhecer que o tema da herança digital não está amplamente regulado em nosso ordenamento jurídico. Questões relativas à privacidade, imagem e direitos autorais se incluem na pauta que, apesar de não ser nova, ainda levanta a indagação: afinal, todo o acervo digital do falecido é transmissível?
O acervo intangível que engloba ativos de valor econômico, como moedas virtuais, milhas aéreas e perfis profissionais em redes sociais não gera ampla controvérsia em relação à sua inclusão na herança, principalmente devido à mensuração de seu conteúdo econômico. Já os ativos categorizados como de conteúdo sentimental ou afetivo, como fotos, contas em aplicativos e publicações em redes sociais, provocam debates.
No âmbito das manifestações de última vontade, o art. 1.857, § 2º do Código Civil autoriza expressamente as disposições testamentárias de caráter não patrimonial. Não há dúvidas, portanto, de que é permitido ao falecido manifestar a sua vontade em relação a conteúdo digital que possua valor meramente afetivo.
Tanto é assim que algumas plataformas digitais e redes sociais desenvolveram maneiras de acesso e transmissão do patrimônio digital[1]. O Google, por exemplo, oferece a opção para familiares da pessoa falecida solicitarem os dados da conta ou, mediante a apresentação de documentos, até mesmo para encerrarem a conta.
O debate ganha ainda mais relevância quando o falecido não se manifesta em vida a respeito de seu patrimônio digital, seja via testamento ou codicilo, seja por meio das plataformas digitais. A questão reside na classificação desses bens, se são personalíssimos e, portanto, intransmissíveis, ou não. Flavio Tartuce[2], por exemplo, argumenta que os dados digitais relacionados à tutela da privacidade e intimidade da pessoa são indisponíveis e “devem desaparecer com ela” quando do falecimento.
Em contrapartida, há quem sustente a ampla transmissão desses ativos como um direito fundamental, conforme consagrado no art. 5º, XXX, da Constituição. Nesse sentido, a posição do Tribunal de Justiça de São Paulo no âmbito da Apelação nº 1119688-66.2019.8.26.0100, que validou a apropriação da conta de uma usuária pelo Facebook em detrimento dos herdeiros, tem sido criticada por ser considerada inconstitucional[3].
Em sentido oposto, o Tribunal de Justiça do Paraná se posicionou na Apelação nº 0029917-45.2020.8.16.0001 de forma a chancelar o acesso de herdeira à conta da Apple de titularidade de usuário falecido. Seguindo precedente análogo do Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação nº 1004334-42.2017.8.26.0268, a decisão está fundamentada na compreensão de que o art. 1.788 do Código Civil alcançaria a herança imaterial, resultando na responsabilização do fornecedor em disponibilizar os dados.
No caso analisado, entendeu-se que os direitos atrelados à conta de titularidade do falecido – e que representam a sua esfera íntima – são passíveis de serem transmitidos, mesmo na ausência de ato de disposição de última vontade em vida, por qualquer meio. Enquanto crítica, é possível argumentar que o Poder Judiciário teria suprimido o consentimento da pessoa falecida em favor do direito à herança, o que é questionável sob o ponto de vista do princípio da dignidade da pessoa humana.
Como se vê, diante da falta de legislação específica, não existe um consenso claro sobre o tema, especialmente quando não há uma expressão inequívoca da vontade da pessoa falecida. Portanto, a questão da herança digital permanece como uma pauta de debates constante no âmbito judiciário, o que reforça a importância de um robusto planejamento em relação à destinação dos bens digitais. Nesse caso, a orientação jurídica especializada pode ser fundamental.
[1] https://poletto.adv.br/o-acesso-a-heranca-digital-atraves-de-plataformas-online/
[2] TARTUCE, Flávio. Herança digital e sucessão legítima-Primeiras reflexões. Disponível em: https://lnkd.in/dj5PitWD. Acesso em: 4 dez. 2023.
[3] SCHERTEL FERREIRA MENDES, L.; NUNES FRITZ, K. Case report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança digital. Direito Público, [S. l.], v. 15, n. 85, 2019. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3383. Acesso em: 4 dez. 2023.
Giovana Novaes é advogada do núcleo contencioso do Poletto & Possamai Advogados, em Curitiba/PR.
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