Por Ivone Zeger
Começo este artigo com questões que envolvem a eutanásia e, por tabela, a toda a transformação cultural acerca da morte que o tema propõe.
Eventualmente a temática aparece nos jornais, permanece tramitando entre congressistas pelo mundo afora; adentra questões filosóficas, revolve visões de mundo e convicções religiosas. E emerge de forma poética nas telas de cinema como em Uma primavera com minha mãe, da cineasta francesa Stéphane Brizé, ou de forma mais contundente como em Amor, filme do austríaco Michael Haneke.
Uma primavera com minha mãe é um drama que percorre a relação conflituosa entre um filho de meia idade e sua mãe idosa. Com passado um tanto obscuro, ele se vê na contingência de ter de morar com a mãe, que acaba de saber que está gravemente doente e se decide por realizar a eutanásia ou o suicídio assistido. “Você foi feliz?” é uma das perguntas feita à idosa enferma que, assim como outras sutis situações abordadas no filme, ficam soltas, flanando na cabeça do espectador. O filme detalha até mesmo procedimentos técnicos da equipe que vai acompanhar a idosa em sua decisão, mas seu final é aberto, como que oferecendo um convite: reflita!
O filme está em compasso com o sentimento geral na França. O país vem discutindo amplamente a eutanásia. Quando ainda era candidato à presidência, François Hollande prometeu envolver-se de perto com a questão para promover alteração de lei já existente, visando a “morte na dignidade” por meio de assistência médica.
A sociedade francesa debate em várias frentes. Há pareceres nem tão favoráveis, como o do Conselho Consultivo Nacional de Ética, e pressões de ultraconservadores de um lado; de outro lado, uma pesquisa de opinião pública cravou 86% de opiniões favoráveis. O Conselho Nacional da Ordem dos Médicos (CNOM) apoia a alteração na lei que abre o caminho para a prática da eutanásia. No começo deste ano, o CNOM permitiu que, a partir do parecer de uma equipe médica, uma sedação terminal seja ministrada a pacientes em final de vida que tenham feito pedidos “persistentes, lúcidos e reiterados”. O tema está sendo discutido no Parlamento francês.
Voltando ao cinema, o filme Amor, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2013, retrata o aparentemente simples cotidiano de um casal de idosos, pontuado por enfermidades e remédios. A história segue delineando, aos poucos, a opção que o casal assume no final. Basicamente, a narrativa trata do direito de escolher qual será seu destino quando a saúde mostra sinais de esgotamento. O diretor não doura a pílula e leva o espectador a subir mais um patamar no difícil entendimento da busca por uma morte digna.
Na Áustria, país do diretor Michael Haneke, a eutanásia passiva não é considerada ilegal, desde que o paciente concorde com o procedimento. Variando nas regras e nos limites da lei, em mais seis países europeus a eutanásia é permitida: Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suécia, Suíça e Alemanha.
Recentemente, os belgas comoveram-se com a história – desta vez real – de Nathan Verhelst, que aos 44 anos, e depois de intensos tratamentos hormonais e duas cirurgias para mudança de sexo – de mulher para homem –, não conseguiu se adequar ao corpo e optou pela eutanásia. Alegou transtornos físicos e psicológicos “insuportáveis”. O médico do hospital universitário de Bruxelas, onde foi realizado o procedimento, confirmou o estado desesperador do paciente, o que justificou a concordância com o procedimento. Na Bélgica, a maioria da população aprova a eutanásia.
E no Brasil, como avançam as discussões?
A eutanásia, entendida como a abreviação da morte por meio de medicamentos, é considerada crime no Brasil, tipificado no Código Penal. Não há sequer discussão, no âmbito médico ou legal, da possibilidade de descriminalizar essa prática. Já a ortotanásia, que se consiste no emprego de medidas paliativas para diminuir o sofrimento e o não emprego de técnicas invasivas e quase sempre inócuas em busca da cura para uma doença em fase terminal e incurável, está na pauta do Congresso. Evitar a morte utilizando-se de todos os meios à disposição, sem medir o sofrimento do paciente, é procedimento conhecido como distanásia; já a ortotanásia se opõe a essa prática e aponta para a morte mais natural, provocada pelos limites da resistência do corpo à doença.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução 1.995/2012, liberou os médicos para que pudessem exercer a ortotanásia. E estabeleceu critérios e regras para que qualquer pessoa possa definir para si, com o acompanhamento de seu médico, os limites para ações terapêuticas em fase terminal. É o chamado Testamento Vital, que pode ser feito por quem tem mais de 18 anos e está plenamente consciente.
Na verdade, a prática não é assim tão desconhecida. Quantas vezes já ouvimos histórias sobre pacientes com doenças incuráveis que voltam para casa, por sua vontade ou da família, para que possam passar os últimos dias junto aos seus? É claro que tudo depende do paciente, do tipo de doença e da estrutura familiar. O fato é que mesmo que os médicos liberassem seus pacientes, não podiam declarar o procedimento oficialmente. Com a resolução do CFM isso pode ser feito. A base legal para esse procedimento está sendo gestada no Congresso.
Os defensores da ortotanásia se apoiam na Constituição Brasileira, especificamente em três artigos. O inciso III do artigo 1: o da Dignidade da Pessoa Humana; o inciso III do artigo 5º: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; e o princípio da Autonomia Privada, que está presente de forma implícita nos incisos do artigo 5º.
Enquanto projetos de lei tentam alterar o Código Penal, há pressões de todas as vertentes de pensamento tentando fazer chegar aos legisladores suas versões de o que seria uma morte digna. E a polêmica é tanta, que se torna difícil arriscar qual será a decisão final.
Em nível pessoal, também não é assim tão fácil tomar a decisão de realizar um Testamento Vital. Definitivamente, o assunto também demanda bastante discussão de cada um com “seus botões”.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina. É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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