Por Carlos Borrelli
Muitos dos efeitos da reforma tributária aprovada no final de 2023 somente serão sentidos em alguns anos, quando for editada a legislação complementar estabelecendo as alíquotas e os descontos dos novos impostos que serão criados em substituição àqueles atualmente existentes. Conhecer o que está por vir é essencial para o planejamento sucessório, especialmente no caso das holdings familiares.
A sociedade atual, a nível global, passa por intensa transformação, em razão dos mais diversos fatores, o que estabelece a demanda por novas regulações, em especial de cunho sucessório.
Isto porque as relações familiares constituem-se como uma das principais causas das alterações legislativas no campo das sucessões, em que a base é o gerenciamento da propriedade e a solidariedade familiar, esta última contida no art. 3º, inciso Iº da Constituição Federal, onde um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Então, ao contrário do que ocorria no século XIX, marcado pelo individualismo, vê- se, conforme o dispositivo constitucional acima referido, que o século XXI está marcado pelo espírito de solidariedade, principalmente após os horrores presenciados na segunda guerra mundial.
Por isso, o direito à sucessão, além da previsão constitucional inserida no inciso XXX, do art. 5º, da Carta Constitucional (direito de herança), tem como pano de fundo e principal razão de existir, os princípios e valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à família, da igualdade substancial e da solidariedade, da propriedade privada, dentre outros, como configuração do Estado Democrático de Direito.
Feitas essas premissas e considerados os ditos princípios e valores constitucionais que justificam o direito de herança, por outro lado não se pode olvidar das vicissitudes da vida e a existência de conflitos familiares oriundos da partilha da herança deixada pelo de cujus.
À vista disso, uma prévia estruturação sucessória é medida salutar, justamente porque visa mitigar ou eliminar tentativas de desintegração familiar, à medida que proporciona uma adequada e justa divisão da herança, bem como evita toda morosidade e desgaste vindas do inventário e respectivas custas dele decorrentes.
Mas não sendo somente isso, a concepção precoce da sucessão possibilita, ao seu autor, a preservação e continuidade do patrimônio a ser herdado, refreando a sua dilapidação decorrente de conflitos e má administração, afora a participação indesejada de terceiros estrando ao seio familiar.
Portanto, o uso correto das ferramentas disponíveis para um bom e eficaz planejamento sucessório permite a manutenção patrimonial, bem como a harmonia e manutenção da integridade familiar.
Para isso, uma das ferramentas mais usadas atualmente é o uso das estruturas societárias, que mercadologicamente é chamada de holding familiar, cujo objeto social é, na grande maioria as vezes, a compra e venda, administração e locação de bens próprios.
Acontece que essa última atividade, a locação, foi alvo de ampla disputa judicial acerca da incidência ao não do ISSQN (imposto sobre serviços de qualquer natureza), de competência dos municípios, travada entre fisco e contribuintes nas cortes superiores (STF e STJ). A discussão girava em torno de se saber se havia a incidência ou não do ISSQN sobre a atividade de locação de bens imóveis pela pessoa jurídica.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça é possível citar o julgamento do REsp nº
952.159 – SP, de relatoria do eminente Ministro Mauro Campbell Marques, donde restou decidido que não havia previsão específica na lei (para bens imóveis), porque o conteúdo do contrato de locação é incompatível com o conceito de “prestação de serviços”, que é o elemento material daquele imposto.
Já, na esfera do Supremo Tribunal Federal, houve o julgamento do RE 784.439, de relatoria da Ministra Rosa Weber, restando decidido que a lista de serviços contina na Lei Complementar nº 116/2003, não contempla, como serviço, a locação de bens imóveis.
Pois bem. Com a vigência da reforma tributária promovida pela Emenda Constitucional nº 132/2023, houve a criação do imposto de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, chamados de IBS (imposto sobre bens e serviços) e CBS (contribuição sobre bens e serviços), baseados num modelo tributário chamado de IVA DUAL (imposto sobre valor agregado – IVA = CBS + IBS), sobrepondo-se ao ICMS, ISSQN, PIS e COFINS, respectivamente (art. 156-A – CF), cuja vigência se iniciará em 2026.
E, com isso, o questionamento que se faz é: a locação de bens imóveis passará a ser tributada pelo IBS e pela CBS? Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto e/ou de estabelecer uma posição definitiva de nossa parte, o objetivo deste artigo é o de fazer uma breve reflexão acerca da incidência dos novos tributos nas operações de locação de bens imóveis pela pessoa jurídica.
Para tanto, foi apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 68/2024, que regulamenta a reforma tributária e aborda as regras gerais da tributação sobre o consumo. No artigo 4º, inciso II, foi incluído, no campo de incidência do IBS e da CBS, a locação. Além dessa nova incidência, o PL 68/2024 prevê que as alíquotas dos novos tributos serão fixadas individualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, através de lei específica, devendo ser adotada a mesma para todas as operações de bens e consumo.
Ocorre que, geralmente, quando se usa as estruturas societárias (sociedades limitas ou sociedades anônimas, conforme o caso) como uma das ferramentas adequadas para o planejamento sucessório, o regime tributário de maior preferência e o mais eficaz é o lucro presumido, lembrando que, para essa atividade (locação de bens imóveis próprios), não é possível o seu enquadramento no regime do Simples Nacional (art. 17, inciso XV, da Lei Complementar nº 123/2006).
Através desse regime, que é o mais simples e com menos obrigações acessórias em comparação ao lucro real apurado, garante-se às empresas optantes um baixo custo administrativo e contábil porque o seu cálculo é realizado com base em um percentual predefinido incidente sobre a receita bruta, garantindo ao contribuinte uma maior previsibilidade da carga tributária, o que possibilidade um adequado planejamento financeiro.
Ele prevê uma estimativa de lucro que define o quanto a empresa terá que pagar, porque o seu cálculo é feito a partir de um percentual chamado de margem de presunção, (ao contrário do lucro real, cujo cálculo é feito sobre o valor que a empresa de fato lucrou) definido legislação específica conforme o ramo de atividade.
Esses percentuais têm a sua incidência trimestral para o cálculo do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). A par destes tributos, há, ainda, a obrigatoriedade de o contribuinte pagar o PIS e a COFINS e, conforme o ramo de atividade, o ICMS e o ISSQN também, além do IPI.
O problema é que, apesar de as alíquotas serem objeto de regulamentação por meio de leis específicas do respectivo ente federativo, nos termos da previsão contida no art. 14 do PL 68/2024, há quem cogite que a alíquota do IVA nacional possa ser estabelecida entre os patamares de 26% a 27,5%, podendo variar.
No atual modelo, na atividade de locação de imóveis próprios na pessoa física, a alíquota nominal (de IRPF) poderá chegar ao percentual de até 27,5% (mas nem sempre chega), conforme for a carga de deduções, sendo que na pessoa jurídica, sob o lucro presumido, o custo tributário final pode variar entre 11,33% até 14,53%.
Sucede-se que a locação é caracterizada como uma relação jurídica de natureza não personalíssima, sendo conceituada por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho como sendo “o negócio jurídico por meio do qual uma das partes (locador) se obriga a ceder à outra (locatário), por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa infungível, mediante certa remuneração” (Manual de Direito Civil, 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2023, pág. 1342 a 1343).
Sendo assim, não constitui a locação uma prestação de serviços, isso porque, a nosso ver, os elementos essenciais do contrato de prestação de serviços são: o objeto, a remuneração e o consentimento.
No que tange ao objeto, este consiste numa atividade humana em que o devedor (sujeito passivo), tem o dever de realizar uma prestação de dar, fazer ou não fazer, ou seja, traduz- se numa atividade do devedor, comportamento esse disciplinado pelo Código Civil relacionado ao Direito das Obrigações.
Consoante ensinamento dos autores acima citados, “obrigação significa a própria relação jurídica pessoal que vincula duas pessoas, credor e devedor, em razão da qual uma fica ‘obrigada’ a cumprir uma prestação patrimonial de interesse da outra”. (ob. Cit. Pág. 438).
Trata-se, a obrigação, no dever de prestação (objeto material – dar, fazer e não fazer) imposto ao devedor (debitum). No caso do objeto deste artigo, objetiva averiguar se a locação de bem imóvel é ou não uma prestação de fazer que, segundo a doutrina majoritária, consiste na atividade própria do devedor.
A teor do disposto no art. 565, do Código Civil, “na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e o gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição”. É de se notar os três elementos essenciais da locação: o tempo, a coisa e a retribuição. Ressalte-se que, dentre as várias modalidade de locação, a imobiliária urbana é a mais importante e vem disciplinada pela Lei nº 8.245/91, e é o foco deste artigo.
Mas, será que essa obrigação de “ceder” poderá ser considerada como uma autêntica prestação de serviços, a fim de ser incluída no fato jurídico tributário (antecedente normativo de uma situação de fato), estando apta a resultar na concretização da relação jurídica tributária?
Isto porque tanto a Constituição Federal, através do art. 156-A, § 1º, incisos I e II, quanto o PL nº 68/2024, art. 1º, incisos I e II, criaram, como já dito, um imposto e uma contribuição que foram instituídos sobre bens e serviços.
A resposta, a nosso ver (não temos a pretensão de estabelecer uma palavra final sobre o assunto, mas tão somente causar uma reflexão), é não! E isso porque a locação de um bem imóvel não poderá ser considerada como sendo uma prestação de serviços, seja porque está regulamentada em legislação específica (Lei nº 8.245/91) e, também, porque se caracteriza como sendo uma relação jurídica em que o locador cede ao locatário o uso e gozo do seu imóvel, mediante o pagamento de um aluguel.
E, de outra banda, a prestação de serviço exige a execução de uma atividade por parte do prestador em benefício do tomador, mas jamais a cessão do uso de bem imóvel e, ainda assim, não se pode esquecer que a tributação incidente sobre a locação de bem imóvel é diferente da prestação de um serviço, em que aquela nem sequer foi inserida na lista de serviços da Lei Complementar nº 116/2003.
Posto isto, o nosso singelo entendimento é no sentido de que a locação de bem imóvel poderá ser classificada como sendo uma relação jurídica contratual bastante distinta da prestação de serviços, sendo regulamentada por legislação própria, razão pela qual entendemos estar fora do campo de incidência do IBS e da CBS.
Carlos Borrelli é advogado especializado em planejamento sucessório e direito tributário, e sócio-fundador do Carlos Borrelli Advogados Associados, com sede em Curitiba/PR.