Por David Roberto R. Soares da Silva
Nos últimos tempos, a Prefeitura de São Paulo tem intensificado a ação de fiscalização contra holdings patrimoniais que pleitearam a imunidade de ITBI nos últimos anos, em especial em 2019 e 2020. O resultado tem sido autuações fiscais com a cobrança do imposto, multa e juros, fundadas em argumentos simplesmente estapafúrdios.
Para contextualizar, a Constituição brasileira estabelece imunidade (isenção constitucional) do ITBI às operações em que há incorporação de imóveis ao capital de empresas. Esta imunidade está condicionada à inexistência de atividade imobiliária preponderante da empresa que recebe o imóvel, assim entendida a compra, a venda, a locação e o arrendamento de imóveis.
A imunidade nessas operações é utilizada no planejamento sucessório com a criação de holding para deter imóveis de uso pessoal e outros bens, como participações societárias, veículos etc. Para a fruição deste benefício, é necessária a obtenção de exoneração do ITBI junto à municipalidade.
Desde 2018, o município possui um sistema eletrônico que permite a obtenção da exoneração rapidamente, tendo como contrapartida a obrigação periódica de submeter informações contábeis da empresa para a Prefeitura paulistana. O objetivo dessa obrigação é permitir que a Municipalidade verifique que não há receitas de venda e locação de imóveis. A omissão no envio das informações gera o cancelamento do benefício e a cobrança do imposto com multa e juros[1].
Pois bem, mesmo com todas essas informações disponíveis, a Prefeitura tem fiscalizado e autuado empresas receptoras de imóveis, especialmente aquelas constituídas para deter imóveis pessoais com fins de organização patrimonial e planejamento sucessório. A fiscalização chegou ao ponto visitar os imóveis entrevistarem porteiros e vizinhos para saber quem os utiliza, se pagamento de aluguel e por aí vai. E ainda pede informações sobre contas de consumo e pagamento de taxas para verificar a origem dos recursos para pagamento dessas despesas. A isso se somam intimações fiscais solicitando informações sobre o uso e destinação dos bens e as razões pelas quais a empresa foi constituída.
Note-se que tudo está dentro do poder-dever do fisco de verificar a conformidade tributária dos benefícios fiscais concedidos aos contribuintes.
No entanto, mesmo quando o contribuinte comprova o atendimento do requisito constitucional de que não auferir receitas imobiliárias, demonstrando que a empresa foi constituída para fins de deter ativos, o fisco paulistano cancela a exoneração e cobra o ITBI sob o argumento de que não haveria ‘propósito negocial’ na empresa, dado que ela não possuiria operações.
Vale transcrever o que alegou a fiscalização do ITBI em um caso recente, que levou à lavratura de auto de infração contra uma holding patrimonial:
“Do exame dos registros contábeis da interessada, observa-se que no período analisado não há qualquer registro de receita operacional auferida, tampouco verifica-se atividade econômica, o que indica falta de propósito negocial e caracteriza desvirtuamento de propósito da própria benesse constitucional aqui tratada, desviando-se da finalidade pretendida pela regra imunizante, de desonerar (e estimular) a capitalização e o crescimento das empresas e, por conseguinte, fomentar a atividade econômica.
De fato, em resposta às convocações, a sociedade afirma que foi constituída com o propósito específico de deter parte do património imobiliário de seus fundadores com objetivo de consolidá-los na sociedade para fins de sucessão. Informou ainda que, para tanto, foi constituída única e exclusivamente para exercer as atividades atinentes a holding de instituições não-financeiras e que, diante de sua natureza de “holding” do patrimônio imobiliário de seus fundadores, a sociedade não aufere nem nunca auferiu quaisquer receitas desde a sua constituição, sejam estas decorrentes de prestação de serviços, venda de mercadorias, aluguéis ou compra e venda de imóveis. Afirmou-se ainda que a sociedade nunca contratou empregados, sobretudo em razão de sua natureza de empresa holding não operacional.
Nesse sentido, insta salientar que referida imunidade tributária não é voltada para fins de planejamento sucessório ou de mero planejamento tributário, visto que nesses casos também há o desvirtuamento da benesse constitucional, desviando-se do fim almejado pela regra imunizante de incentivo ao desenvolvimento do país. Uma empresa inativa e/ou que se presta apenas à transferência patrimonial não configura uma unidade produtiva, pois não exerce atividade econômica (não produz nem oferece bens ou serviços à sociedade, nem gera empregos).
(…)
Em face do exposto, conclui-se que as transmissões imobiliárias ora fiscalizadas não estão amparadas pelo benefício fiscal de não incidência do ITBI, tendo em vista tratar-se de empresa sem propósito negocial, constituída especialmente para a sucessão patrimonial por meio da transferência de cotas entre familiares, tornando-se, assim, devido o imposto sobre referidas transmissões.” (grifos e destaques nossos)
Resumindo, o fisco entende que a imunidade do ITBI somente se aplica se a empresa receptora, mesmo sem receita imobiliária, tem atividade operacional , pois seria essa a vontade do legislador constitucional. E vai além: a organização patrimonial e o planejamento sucessório não configuram propósito negocial que permite o gozo da imunidade do ITBI.
Do texto transcrito é possível notar que o próprio fisco reconhece que a empresa atendeu ao requisito constitucional de não auferir receita imobiliária. No entanto, foi além do permitido, criando de uma cabeça um segundo requisito, o tal “propósito negocial”, que também interpreta de forma incorreta como sendo “propósito de atividade operacional”. Em outras palavras, para o fisco paulistano, não basta não ter receita imobiliária, tem que ter outro tipo de receita operacional, caso contrário a imunidade do ITBI não se aplica.
Ora, não é isso que diz o texto constitucional e tampouco o Código Tributário Nacional (CTN) que condicionam o gozo da imunidade tributária apenas à inexistência de atividade imobiliária[2]. É o que dispõem os Arts. 36 e 37 do CTN:
“Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto [ITBI] não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
(…)
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.”
A redação do CTN (ou da Constituição) nada fala (nem define) sobre propósito negocial ou na proibição de utilização da imunidade de ITBI por empresa que não aufira qualquer tipo de receita.
Ademais, equivoca-se a fiscalização ao equiparar “propósito negocial” com atividade operacional. Em linhas gerais, no Direito Tributário, o propósito negocial diz respeito ao motivo que para se realizar negócio ou transação, sem ser a mera economia tributária. Em outras palavras, há falta de propósito negocial quando a realização de um negócio tem apenas o objetivo de economizar imposto.
No presente caso, quando se olha as operações em si, o que se vê é exatamente o contrário. Se, ao invés de criar a holding e doar quotas, o titular do patrimônio resolvesse simplesmente doar os imóveis diretamente aos filhos, o único imposto a incidir na operação seria o ITCMD, de competência estadual, e não o ITBI.
Isso porque o ITBI somente incide em transmissões onerosas de imóveis, como a compra, venda, permuta etc., ao passo que as transmissões gratuitas, como doações e heranças, são gravadas pelo ITCMD. Indo além, se o titular dos imóveis não constituísse a holding e tampouco doasse os imóveis em vida aos filhos, mesmo assim o único imposto incidente seria o ITCMD durante o processo de inventário.
Logo, o raciocínio municipal de que a holding com fins sucessórios burla o pagamento do ITBI é uma falácia, pois mesmo sem ela o ITBI não incidiria na doação ou sucessão. Esse simples raciocínio demonstra a falta de sustentação das alegações do fisco paulistano, pois o planejamento sucessório por meio de holding patrimonial não tem o condão de evitar o pagamento do ITBI, que não seria devido de qualquer forma.
Entre os motivos para uma holding desse tipo podemos citar a vontade de evitar disputas dos herdeiros sobre os bens imóveis, evitar a copropriedade (mais de um proprietário do mesmo imóvel) que exija unanimidade para venda ou locação do imóvel, evitar complicações legais que envolvam herdeiros menores ou incapazes, promover a unidade familiar na busca por consenso entre os herdeiros, evitar o desmembramento de imóveis (no caso de imóveis rurais) com perda de valor. Podemos citar outros, dentre os quais, certamente, não está a economia do ITBI…
Felizmente, para aqueles que possuem holdings no município de São Paulo, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem se posicionado favoravelmente. Casos julgados pelo tribunal tem sido no sentido de que a finalidade de planejamento patrimonial e sucessório é um propósito negocial suficiente para garantir a imunidade do ITBI na conferência de imóveis ao capital social.
Vejamos alguns julgados nesse sentido:
“APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO NECESSÁRIO Mandado de Segurança – ITBI – Município de Morro Agudo Integralização de bens imóveis ao capital social Imunidade tributária condicionada à aferição da atividade preponderante Ausência de comprovação de que a pessoa jurídica exerça, de forma preponderante, atividades de compra e venda, locação de bens imóveis e arrendamento mercantil Imunidade tributária que deve ser garantida Inteligência dos artigos 156, §2º, I, da Constituição da República e artigo 37 do CTN Afastada, assim, a alegação de desvio de finalidade, em razão de uma interpretação teleológica ou finalística da norma, ou seja, de que a imunidade concedida em relação ao ITBI não poderia prevalecer por se tratar de engenharia tributária para planejamento sucessório, porquanto a lei não traz qualquer objeção nesse sentido. Sentença mantida Recursos desprovidos.” (TJSP; Apelação 1001040-13.2021.8.26.0374, julgamento em 21.10.2022)
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ANULATÓRIA – MUNICÍPIO DE SÃO PAULO – PRETENSÃO A NÃO INCIDÊNCIA DE ITBI SOBRE A INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL POR MEIO DE TRANSFERÊNCIA DE IMÓVEL – CABIMENTO – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA ( CF, ART. 156, II, § 2º) QUE DEVE SER RECONHECIDA – EMPRESA QUE NÃO OBTEVE FATURAMENTO DESDE SUA CONSTITUIÇÃO – MERA INATIVIDADE DA SOCIEDADE NÃO IMPEDE O RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE – INTELIGÊNCIA DO ART. 37, § 2º, DO CTN – ALEGAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DA SOCIEDADE COMO MEIO DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO QUE É IRRELEVANTE – DISTINÇÃO NÃO REALIZADA PELA NORMA IMUNIZANTE – PRECEDENTES DESTA EG. CORTE – SETENÇA REFORMADA – RECURSO PROVIDO.” (TJSP, Apelação Cível 1003056-79.2022.8.26.0090, julgamento em 22.06.2023.)
Além desses, há outros julgados, inclusive do STJ, que decidiram que a inatividade da empresa receptora dos imóveis não é condição suficiente para a exigência do ITBI.
De qualquer forma, é importante que sócios de empresas holding utilizadas em planejamento patrimonial e sucessório fiquem alertas para eventuais fiscalizações de ITBI relacionadas com os imóveis conferidos ao seu capital. O atendimento correto da fiscalização é o ponto de partida para se preparar para eventual defesa em caso de autuação que, como vimos, tem boas chances de ser derrubada.
[1] Veja mais sobre o assunto no artigo “Holding patrimonial e ITBI no município de São Paulo. O que você precisa saber” de autoria de Ricardo Blanco, publicado pela Editora B18. Disponível em: https://www.b18.com.br/holding-patrimonial-e-itbi-no-municipio-de-sao-paulo-o-que-voce-precisa-saber/
[2] É de se fazer ressalvas às inúmeras controvérsias atualmente existentes sobre o ITBI na conferência de imóveis ao capital social de empresas, que não objeto deste artigo.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
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