O brasileiro está sempre procurando uma alternativa de pagar menos. E com o patrimônio, não é diferente.
O investimento na prevenção das questões patrimoniais ainda é visto pelo brasileiro como uma despesa desnecessária. Muitos só procuram assessoria jurídica quando o “leite já está derramado”, quando há “fogo no parquinho”. Porém, pode ser tarde demais…
Situação muito comum é o pai ou a mãe que quer transferir um imóvel para doar ao filho ou filha em vida. Entre doar o imóvel de R$ 2 milhões no Rio de Janeiro e recolher 8% de ITCMD (imposto de transmissão causa mortis e doação), prefere realizar a venda e recolher 3% de ITBI (imposto de transmissão sobre bens imóveis).
Porém esse filho vive em união estável não formalizada. E, uma vez não formalizada, o regime será o da comunhão parcial de bens, salvo os casos de separação obrigatória previstos no art. 1.641 do Código Civil. E a consequência patrimonial do regime da comunhão parcial de bens é a de que todos os bens adquiridos onerosamente (leia-se comprados) durante a união estável são bens comuns e ao final dessa união, seja pela dissolução ou pelo falecimento, haverá o direito a meação desses bens. Logo, para economizar 5% de tributo (diferença de 8% do ITCMD para 3% do ITBI) perdeu-se 50% do patrimônio para o(a) companheiro(a) do recebedor do bem. Isso mesmo, o genro ou a nora ficará com metade do imóvel transferido.
Se, no momento da transferência, todos estavam cientes dessa consequência está ótimo. O problema é que, na grande maioria das vezes, não pensam nisso. Muitas vezes, pelo fato do estado civil do(a) filho(a) ser de solteiro(a), esquecem que o relacionamento informal pode vir a ser configurado como união estável futuramente, inclusive post mortem. Aí, só depois do leite derramado é que se dão conta de que não foi a melhor escolha.
Sem falar que toda venda de ascendente para descendente necessita de anuência dos demais descendentes e do cônjuge/companheiro(a) do vendedor, se houver, sob pena de anulação da venda, conforme art. 496 do Código Civil.
Cabe frisar, ainda, que na compra e venda não é possível a inclusão de cláusulas protetivas/restritivas como na doação. Cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade, impenhorabilidade e reversão se mostram muito interessantes e eficientes quando pensamos em planejamento sucessório, sendo aplicáveis às doações.
A incomunicabilidade garante que não haverá comunicação do bem recebido, independente do regime de bens do donatário. Mesmo os casados na comunhão universal de bens, em caso de dissolução ou falecimento, não haverá a meação do mesmo, conforme art. 1.668 do Código Civil. Lembrando que o cônjuge/companheiro sobrevivente poderá ser herdeiro desse bem se não houver descendentes. Destaca-se a importância de estender a incomunicabilidade aos frutos do bem, pois apesar de o bem em si ser incomunicável, os seus frutos (exemplo: dividendos, aluguel) percebidos por ele não são, conforme art. 1.669 do Código Civil, salvo cláusula expressa.
A inalienabilidade garante que o bem doado não poderá ser transferido gratuita ou onerosamente. E essa cláusula precisa ser utilizada com certo cuidado, pois pode engessar o patrimônio. Muitas vezes, acaba sendo interessante vincular a inalienabilidade a uma condição. Por exemplo: inalienabilidade vinculada ao usufruto, enquanto o usufruto sobre o bem existir ele será inalienável. Com a extinção do usufruto, por morte ou renúncia, o bem passa a ser alienável, lembrando que o usufruto não impede a venda da nua-propriedade do bem.
A impenhorabilidade protege o bem de penhora para satisfação de credores e impede que o bem seja dado em garantia.
A reversão é a famosa cláusula para proteger o bem dos agregados (nora, genro). Ela garante que se o donatário falecer antes do doador, o bem retorna ao patrimônio do doador, conforme art. 547 do Código Civil. Logo, o bem não será inventariado, não sendo então partilhado com o cônjuge sobrevivente a depender do regime de bens se houver descendentes, ou em concorrência com os ascendentes independente do regime de bens.
E outra questão a ser levada em consideração na venda do bem é o lastro financeiro do adquirente. Ou seja, o comprador do imóvel tem capacidade financeira em renda comprovada para a aquisição desse bem? Caso não tenha precisará acertar as contas com o Leão (Receita Federal), que a fome é grande, mediante o recolhimento de imposto de renda sobre essa receita supostamente omitida.
Ah, mas você pode estar pensando: “É só lançar no imposto de renda do(a) filho(a) que referido valor entrou como empréstimo do pai ou da mãe, e vice-versa!” – Aqueles empréstimos que nunca são quitados, a perder de vista, ou que ano a ano abate uma parcela pequena de acordo com o rendimento recebido.
Mas o fisco também está de olho nisso. Vejamos alguns julgados do CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais nesse sentido:
“ACRÉSCIMO PATRIMONIAL. COMPROVAÇÃO DE ORIGEM EMPRÉSTIMOS.
A comprovação de empréstimo exige provas específicas, não bastando a apenas a juntada de contratos particulares. Para essa comprovação é imprescindível que:
(1) seja apresentado o contrato de mútuo assinado pelas partes;
(2) o empréstimo tenha sido informado tempestivamente na declaração de ajuste;
(3) o mutuante tenha disponibilidade financeira; e
(4) esteja evidenciada a transferência do numerário entre credor e devedor (na tomada do empréstimo), com indicação de valor e data coincidentes como previsto no contrato firmado e o pagamento do mutuário para mutuante no vencimento do contrato.” (CARF, Proc. 10980.726004/2011-40, julgado em 12/02/2019)
“DEPÓSITOS BANCÁRIOS. EMPRÉSTIMOS DE MÚTUO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO POR DOCUMENTAÇÃO HABIL.
O empréstimo de mútuo em dinheiro aperfeiçoa-se a partir das relações de entrega da quantia por parte do mutuante e do pagamento ou quitação do respectivo valor por parte do mutuário. O contribuinte deve, portanto, comprovar o fluxo financeiro em suas contas bancárias a partir dos ingressos dos numerários e das respectivas saídas a título de quitação dos empréstimos, podendo fazê-lo, a propósito, através de documentação bancária, tais como TED S, DOCís, saques, depósitos realizados em valores correspondentes etc.” (CARF, 10120.010187/2010-27, julgado em 02.12.2020)
Nesse caso de simulação de empréstimo o risco tributário chega até 48,12% de imposto de renda (27,5% + multa).
Cabe ainda registrar que, se configurada a simulação, a compra e venda será nula e subsistirá a doação, conforme art. 167 do Código Civil: “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. A simulação do negócio jurídico ocorre quando há uma declaração enganosa de vontade de quem praticou o negócio, de forma a fazer parecer real o acordo que tem por origem uma ilicitude, visando, no geral, fugir de obrigações ou prejudicar terceiros.
Logo, uma compra e venda realizada entre ascendente e descendente sem que haja o pagamento efetivo, ou por um valor módico, estaremos diante de uma simulação em que o negócio simulado (venda) será nulo, e o dissimulado (doação) subsistirá.
O negócio jurídico simulado não se submete aos institutos da prescrição ou da decadência, conforme entendimento consolidado no STJ (AgInt no REsp 1.388.527, AgInt no AREsp 1.557.349, AgInt no REsp 1.783.796, EDcl no AgRg no Ag 1.268.297 e AgInt no REsp 1.577.931).
A confusão estará posta da mesma forma quando o pai ou a mãe resolve comprar o imóvel em nome do(a) filho(a), sendo que não há lastro financeiro deste(a) filho(a) para isso. Tudo o que foi dito acima se aplica da mesma forma. O ideal, nesses casos, é utilizar o instituto da doação modal. Ou seja, doa dinheiro ao filho(a) e com esse dinheiro o(a) filho(a) compra o imóvel. Aqui haverá a incidência do ITCMD na doação do dinheiro e ITBI na compra do bem imóvel.
Sim, fica mais caro. Mas a segurança estará garantida, inclusive com a inclusão de cláusulas protetivas/restritivas que irão se sub-rogar ao bem comprado. E o bem sub-rogado ao particular não participa da comunhão.
Portanto, planejamento patrimonial é de vital importância. Muitas vezes aquilo que num primeiro momento se apresenta como mais econômico, pode não ser ao final. Os riscos devem ser todos conhecidos. Por isso, um olhar 360º do patrimônio familiar se faz necessário.
Ana Carolina Tedoldi é advogada, escritora, professora e palestrante, especializada em planejamento patrimonial da família. Coautora dos livros 101 Dicas de Holding e Família e Empreendedorismo, e presidente da Comissão de Planejamento Patrimonial da Família da OAB-RJ Barra da Tijuca.