Por Marina de los Santos Gonçalves
O recente caso envolvendo o testamento de Cid Moreira, que deserdou seus filhos com base na indignidade prevista no Código Civil, trouxe à tona discussões importantes sobre planejamento sucessório.
A deserdação, ou exclusão de herdeiros, é uma possibilidade legal no Brasil, mas que deve ser tratada com muita cautela e embasada em motivos sólidos. O artigo 1.961 do Código Civil brasileiro prevê que o testador pode deserdar herdeiros necessários, desde que fundamente essa exclusão em motivos previstos na lei.
Herdeiros necessários, como filhos, pais e cônjuges, têm direito a uma parte legítima da herança, que corresponde a 50% do patrimônio do falecido. No entanto, em casos de atos graves, como os previstos no artigo 1.814 do Código Civil, é possível que esses herdeiros sejam excluídos da sucessão. Esses atos incluem:
- Ofensa física ou grave injúria ao autor da herança
- Tentativa de homicídio contra o testador
- Relações indignas, como maus-tratos ou abandono
- Difamação ou calúnia contra o falecido
- Falta de prestação de socorro em situação de necessidade do testador
Como funciona a deserdação?
Para que a deserdação tenha validade, é necessário que o testador exponha claramente os motivos no testamento, de acordo com as hipóteses legais.
Além disso, essa decisão pode ser questionada pelos herdeiros em juízo, cabendo a quem defende a deserdação provar a veracidade dos fatos alegados.
Em muitos casos, a exclusão se fundamenta na “indignidade”, como citado nos artigos 1.814 a 1.818 do Código Civil. A indignidade é um conceito amplo que abrange condutas de herdeiros que comprometem os laços familiares de forma grave e irreparável, como crimes contra o testador ou situações de deslealdade extrema. Trata-se de uma pena civil que priva o herdeiro ou legatário de receber a herança a que teria direito por ter cometido atos considerados graves contra o autor da herança ou seus familiares.
O artigo 1814 do Código Civil estabelece três situações em que herdeiros ou legatários podem ser excluídos da sucessão por indignidade:
- Participação em crime de homicídio doloso, ou tentativa, contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.
- Acusação caluniosamente em juízo o autor da herança ou prática de crime contra sua honra ou de seu cônjuge ou companheiro
- Uso de violência ou fraude para impedir ou dificultar que o autor da herança disponha livremente de seus bens por testamento ou outro ato que expresse sua vontade.
Importante dizer que a exclusão da sucessão não ocorre de forma automática em razão de uma disposição testamentária. Ela deve ser reconhecida e declarada por sentença judicial, conforme determina o artigo 1815 do Código Civil.
Até 2023, a exclusão de herdeiro exigia que essa sentença fosse proferida em um processo cível, depois de finalizado o processo criminal que reconhecia os crimes listados acima. Sem a sentença criminal, não era possível iniciar a ação civil de indignidade.
Isso mudou com a edição da Lei nº 14.661/2023, que acrescentou o artigo 1.815-A ao Código Civil e passou a prever a exclusão automática do herdeiro indigno mediante o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Com isso, não há mais a necessidade de um processo cível depois do criminal para a exclusão do herdeiro, bastando o trânsito em julgado da sentença penal. Esse modificação encurtou o tempo necessário para a exclusão do herdeiro, reduzindo, também, o sofrimento e a angústia das pessoas envolvidas.
Deserdação: uma ferramenta delicada
A deserdação deve ser usada como um último recurso em situações excepcionais. Testadores que desejam utilizar esse instrumento precisam garantir que sua decisão seja juridicamente sólida, o que inclui a presença de provas documentais e até laudos médicos que atestem a sanidade do testador no momento de redigir o testamento.
A deserdação, quando feita de forma correta, pode evitar que patrimônios sejam destinados a pessoas que, por ações indignas, não merecem participar da sucessão. No entanto, é essencial que o testador compreenda os impactos dessa decisão e os potenciais conflitos que podem surgir entre os herdeiros.
O planejamento patrimonial não se limita à distribuição de bens; ele também deve contemplar medidas para a proteção do testador e de seu legado. Um testamento bem estruturado, que considere aspectos emocionais e jurídicos, é uma das ferramentas mais importantes para assegurar que a vontade do titular seja respeitada, minimizando disputas familiares futuras.
Marina de los Santos Gonçalves, é advogada com LLM em Direitos dos Mercados Financeiros e de Capitais pelo Insper, e head de Wealth Planning da Monte Bravo Corretora.