Por David Roberto R. Soares da Silva
Não são poucas as vezes que, quando estamos discutindo um planejamento patrimonial e sucessório, um cliente indaga sobre a possibilidade de um pai (ou mãe) vender um bem a um filho pelo valor declarado no imposto de renda e, com isso, evitar a incidência do imposto estadual sobre doações (ITCMD, ITCD ou ITD, a depender do estado). Mas vale a pena?
Bem, para começar, a lei brasileira não proíbe este tipo de venda (de pai para filho), mas há algumas considerações legais e tributárias, que não podem ser ignoradas.
Comecemos pelo que diz o Código Civil sobre a validade desse tipo de operação. Seu art. 496 diz:
“Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.
Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória.”
Pela lei civil, a venda de ascendente para descendente deve contar com a anuência (consentimento) expresso dos demais descendentes e do cônjuge, sendo desnecessária a anuência deste último apenas quando for casado sobre o regime da separação obrigatória de bens.
Este regime não se confunde com o regime da separação (voluntária) de bens escolhido pelos noivos antes do casamento. O regime da separação obrigatória ocorre em certos casos estabelecidos em lei, sendo os mais casos mais comuns aqueles que envolvem uma das partes com mais de 70 anos, ou do divorciado cuja partilha de bens com o ex-cônjuge ainda não tiver sido concluída.
Mas note que se o regime de casamento for o da separação voluntária de bens, a anuência é necessária.
A ausência da anuência dos descendentes e do cônjuge não torna a venda nula, mas anulável, ou seja, algum descendente ou o cônjuge pode pleitear em juízo a anulação da transação. O prazo para pleitear a anulação é de dois anos a contar do ato de venda, nos termos do que determina o art. 179 do mesmo Código Civil:
“Art. 179. Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato.”
Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a mesma regra para anulação de venda de ascendente para descendente se aplica quando se utiliza um terceiro pelo qual a venda é feita como forma de burlar a restrição da venda direta (Recurso Especial nº 1.679.501). No caso julgado, no entanto, a venda não foi anulada pois a propositura da ação de anulação ocorreu depois de dois anos do ato.
Mas o julgamento trouxe alguns aspectos adicionais interessantes sobre o tema da venda de pai para filho. Dentre eles, destaca-se que a anulação da operação, para o STJ, exigiria o atendimento de alguns requisitos, a saber:
- a iniciativa da parte interessada, ou seja, a propositura efetiva de uma ação judicial por uma parte tida como prejudicada;
- a ocorrência do fato jurídico, qual seja, a venda considerada como inválida;
- a existência de relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador;
- a ausência de consentimento expresso dos demais descendentes e, quando for o caso, do cônjuge;
- a comprovação do objetivo de dissimular doação (ex., uso de terceiro), ou o pagamento de preço inferior ao valor de mercado.
O último elemento é um fator importante, pois a venda de um bem pelo valor da declaração de IR do ascendente pode ser a prova de preço inferior ao de mercado. Normalmente, esse é o caso da quase totalidade dos bens imóveis, cujo valor declarado no IR é infinitamente menor do que o seu valor de mercado.
Note, no entanto, que se houver o consentimento de todos os herdeiros e o cônjuge, a venda não é mais anulável, pois a lei somente considera como tal a venda sem consentimento.
Mas isso não significa que a venda de bem de pai para filho, mesmo com o consentimento de dos descendentes e cônjuge, seja livre de riscos. Outros riscos existem e devem ser considerados, senão vejamos.
Riscos tributários
Há dois possíveis riscos tributários associados à venda de bens por ascendente a descendente, especialmente se o preço ajustado for inferior ao de mercado.
O primeiro deles é o risco de ITCMD (ITCD ou ITD). Caso a operação venha a ser de conhecimento do fisco estadual, este poderá entender que se trata de uma doação disfarçada, exigindo o ITCMD sobre o valor (total) de mercado do bem, sem prejuízo de juros de mora e pesadíssima multa de ofício, que no estado de São Paulo pode chegar a 100% do imposto devido. O prazo para o fisco revisar esta operação é de cinco anos a contar de 1º de janeiro do ano seguinte à venda.
A doação disfarçada poderá ser ainda mais evidenciada se não houver efetivo pagamento do preço. Não é incomum, em operações como esta, que se queira evitar a transferência de recursos financeiros entre as partes, criando um crédito/dívida nas declarações de imposto de renda das partes envolvidas.
Outro problema fiscal diz respeito à Receita Federal que poderá entender que, dada a relação de parentesco, o vendedor deixou de reconhecer um ganho de capital na operação de venda, vindo a exigir o imposto (15% a 22,5%) com multa e juros. A multa padrão da Receita Federal é de 75%, mas pode chegar a 150% ou 225% em caso de fraude ou simulação da operação.
Riscos legais
Não são apenas os riscos de anulabilidade e tributários que devem ser levados em consideração na venda de bens de ascendente para descendente.
Se a verdadeira intenção for realmente doar um bem a um descendente, dissimular esta operação em compra e venda para não pagar o ITCMD pode ser um verdadeiro tiro no pé, pois a “economia” fiscal pode não compensar os riscos e vulnerabilidades que acompanham a venda.
Não obstante o custo tributário do ITCMD, a doação permite ao doador adotar algumas medidas de proteção ao bem doado, tais como a imposição de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade, incomunicabilidade e reversão, sem contar a possibilidade de doação com reserva de usufruto. Vejamos brevemente cada uma delas:
- Inalienabilidade: viável em apenas poucos casos excepcionais, a imposição desta cláusula numa doação impede a venda do bem pelo donatário (quem recebe o bem), impedimento este que pode ser temporário ou vitalício, a depender da vontade do doador;
- Impenhorabilidade: esta cláusula protege o bem doado contra dívidas contraídas pelo donatário, oferecendo uma interessante forma de proteção. Assim, o ascendente pode ficar mais tranquilo de que o bem recebido pelo descendente não será “perdido” por dívidas contraídas por este último. Também aqui a impenhorabilidade pode ser temporária ou vitalícia, conforme vontade do doador.
- Incomunicabilidade: a incomunicabilidade protege o bem em caso de divórcio e dissolução de união estável, garantindo que ele fique com o descendente e não seja objeto de partilha de bens.
- Reversão: a reversão tem o poder de fazer o bem doado retornar ao patrimônio do doador (ascendente), caso o donatário (descendente) faleça antes. Essa cláusula é bastante útil, pois evita que um bem doado venha a compor a herança do cônjuge sobrevivente, a depender do regime de bens adotado.
- Usufruto: o usufruto permite que o doador continue se beneficiando do bem doado. No caso de imóvel, permite ao doador receber aluguéis, embora na venda o preço seja recebido pelo donatário. No caso de participações em empresas, o usufruto permite não apenas a tomada de decisões pelo doador-usufrutuário, como também o recebimento de lucros e dividendos.
Das breves considerações acima, pode-se concluir que a compra e venda entre ascendente e descendente é perfeitamente possível, mas deve ser cercada de algumas precauções, como a anuência dos demais descendentes e cônjuge.
Se a verdadeira razão por trás desta operação for uma doação disfarçada apenas para economizar o ITCMD, a economia tributária pode são compensar as oportunidades legais e sucessórias de proteção que a doação oferece.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos. Também publicou Brazil Tax Guide for Foreigners e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos pela Editora B18.
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