Um projeto de lei polêmico em trâmite no Senado Federal quer permitir que idosos revoguem doações feitas durante a pandemia. A medida traz insegurança jurídica e pode criar problemas legais e tributários às partes envolvidas.
A pandemia do COVID-19 é pano de fundo para mais uma iniciativa legislativa que é, no mínimo, controversa.
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 3049/2020, de autoria do Senador Arolde de Oliveira (PSD/RJ), que propõe que, a partir da entrada em vigor da lei, qualquer doação que tenha sido feita por idoso durante a pandemia do COVID-19 possa ser revogada pelo doador no prazo de um ano após o término da vigência das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Corona vírus.
O projeto foi apresentado no Plenário do Senado Federal no dia 2 de junho de 2020 e inclui o art. 2.042-A ao Código Civil (Lei nº 10.406/2002) com a seguinte redação:
“Art. 2.042-A. A partir da entrada em vigor deste artigo, a doação feita por doador idoso, no período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, poderá ser por ele revogada no prazo de um ano após o término da vigência da Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.”
O senador Arolde de Oliveira justifica sua proposição alegando que os idosos são aqueles que contam com mais experiência e, nesta fase incerta, o crescente desemprego e diminuição da renda da população economicamente ativa fazem com que os idosos sejam aqueles com mais patrimônio acumulado e “pedra de sustentação de famílias economicamente abaladas”.
O parlamentar afirma que a tensão dos laços familiares durante a pandemia seria propícia para abusos contra idosos, incluindo a coação para realização de doações. Em outras palavras, o senador assume que doações efetuadas por idosos neste momento seriam frutos de “pressão e chantagem”, sendo que em alguns casos o idoso sequer contaria com “discernimento pleno” para avaliar todas as consequências da doação.
Neste momento em que se registra substancial aumento nas transferências patrimoniais unilaterais, sobretudo como medida de planejamento patrimonial, o Projeto de Lei parece não medir a insegurança jurídica que a proposição pode acarretar.
De acordo com o PL, bastaria que a doação fosse feita por um idoso durante a pandemia para que ela pudesse ser, no prazo de um ano a contar do final do estado de calamidade pública, revogada sem necessidade de qualquer motivação.
Isso coloca em risco toda e qualquer doação realizada por pessoa maior do que 60 anos, dado que é esta a idade legal para uma pessoa ser considerada idosa, nos termos do art. 10 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
A despeito da proteção que se busca oferecer ao idoso, as relações jurídicas potencialmente decorrentes de tal doação ficam sob suspeita.
O que ocorre com as doações havidas neste prazo de um ano? Estariam sujeitas à condição suspensiva?
Imagine um donatário que venda um bem recebido em doação durante pandemia e, no prazo de um ano do final da pandemia, o doador idoso revogue a doação. Como estariam resguardados os direitos do terceiro adquirente neste caso?
O projeto de lei não dispõe se o bem deverá retornar ao patrimônio do idoso ou se caberá apenas o ressarcimento em dinheiro do donatário ao doador.
Tampouco prevê os aspectos tributários da revogação da doação. Na maioria dos casos, a doação está sujeita ao imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD, ITCD ou ITD), cujas alíquotas podem variar de 2% a 8% do valor do bem, a depender do estado. O imposto é devido no ato de doação.
Ora, revogada a doação, como ficaria o ITCMD já pago? Ela daria direito a restituição do imposto? Ou pior, será que estados entenderão que a revogação da doação constitui um novo fato gerador do imposto, dando ensejo a uma nova tributação? Em caso de reversão de doações (quando o donatário falece antes do doador e o bem retorna ao patrimônio deste último), várias leis estaduais consideram a ‘devolução’ do bem como um novo fato gerador, exigindo o imposto. Daí, não seria surpresa uma nova incidência tributária na revogação.
Vale lembrar que o Código Civil já traz hipóteses em que uma doação pode ser revogada, tais como em caso de ingratidão do donatário ou inexecução de encargo imposto quando da doação. Mas todas elas exigem alguma espécie de motivação, sendo vedada, como regra, a revogação pura e simples, como propõe o PL nº 3049/2020. Não há dúvidas, se convertido em lei, o projeto trará insegurança jurídica não apenas às partes envolvidas na doação, como a qualquer terceiro que venha adquirir um bem objeto de doação. Tais terceiros deverão adotar medidas adicionais de precaução para verificar se o bem adquirido não foi doado ao vendedor durante a pandemia…
Priscila Lucenti Estevam, contadora e advogada especializada em planejamento patrimonial e sucessório, coautora dos livros Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos e Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
Muito oportuno o comentário