Por David Roberto R. Soares da Silva
Estruturas fiduciárias (do latim fidere, confiar) são aquelas por meio das quais uma das partes entrega um bem à outra para que esta o administre em proveito do titular original ou de quem este determinar.
No planejamento sucessório internacional, os trusts e as fundações privadas estrangeiras são os exemplos mais comuns de estruturas fiduciárias, utilizadas em grande parte para garantir a perpetuidade e proteção do patrimônio. Ambos os institutos servem aos mesmos propósitos: a administração do patrimônio em favor de certos beneficiários. Mas, infelizmente, nenhum dos dois é possível de ser criado sob as leis brasileiras, exigindo a organização do patrimônio em outra jurisdição. Nosso foco, aqui, é falar um pouco do trust.
Por vários séculos, os trusts têm sido estruturas muito utilizadas em países de tradição common law (sistema jurídico desenvolvido a partir do direito inglês) na preservação do patrimônio familiar e, em alguns casos, empresariais. Sua origem, segundo alguns autores, remonta à Idade Média, ou seja, uma tradição de quase mil anos.
Os trusts não são conceitos que normalmente integram sistemas jurídicos que têm como base o sistema civil law (Direito Civil) como é o caso do Brasil. Mas alguns países de tradição jurídica do civil law decidiram por reconhecer o instituto do trust, seja passando a contemplá-lo em suas leis locais, seja aderindo a regras internacionais que permitam a sua aplicação e reconhecimento no plano jurídico doméstico.
Neste último caso, destaca-se que alguns países adereriam à Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento de 1985 e alteraram suas leis locais para reconhecer o trust e a validade de suas disposições nos seus sistemas jurídicos. Dentre eles, podemos destacar Austrália, Canadá, Chipre, Itália, Liechtenstein, Luxemburgo, Holanda, Malta, Mônaco, Países Baixos, Panamá, Reino Unido, San Marino e Suíça. A França também assinou a Convenção, mas ainda não a ratificou.
Infelizmente, o Brasil não é signatário da convenção sobre trusts, o que dificulta não apenas a sua compreensão local, como também a sua aplicação quando um residente no Brasil decide instituir um trust que possa vir a ter repercussões legais no Brasil.
Por essas razões, as análises sobre a aplicação dos trusts para fins brasileiros são resultado de exercício de interpretação pelos profissionais que militam na área, fundamentado em direito estrangeiro, podendo existir divergência de interpretação não apenas entre esses profissionais como também entre eles e as autoridades brasileiras.
O caso mais recente desta divergência de interpretação ocorreu com a publicação da Solução de Consulta nº 41/2020, na qual a Receita Federal concluiu que valores recebidos do exterior de um trust devem ser considerados rendimentos tributários sujeitos ao imposto de renda (IRPF) pela tabela progressiva (até 27,5%). É bem verdade que os fatos narrados ao fisco parecem ter sido incompletos, ou talvez mal colocados, acarretando uma conclusão fiscal distorcida. Mas isso apenas reforça a nossa afirmação de que por ser um conceito estranho ao direito brasileiro, a sua interpretação pode ser muitas vezes equivocada ou produzir um resultado não desejado, dado que o intérprete (no caso, a Receita Federal) acaba se apegando ao que conhece (lei brasileira, por exemplo) para tentar entender um conceito que lhe é completamente estranho.
Nosso objetivo é fornecer alguns elementos para a compreensão adequada do trust, trazendo ao leitor ideias que lhe são familiares no Brasil para, com isso, entender a essência desse instituto.
“O trust não é uma empresa, uma associação ou um mero contrato. Trata-se de uma estrutura sui generis e híbrida sem um instituto comparável ou semelhante no direito brasileiro. Em linhas gerais, o trust clássico é uma estrutura administrada por alguém (trustee) para quem a propriedade de um bem é transferida por ato de vontade do seu criador (settlor) com a finalidade de que o trustee administre o bem em prol de um terceiro (beneficiário) de acordo com as regras estabelecidas pelo settlor.
O trustee é tratado pela common law como sendo o proprietário do patrimônio sob trust, mas esse direito de propriedade dado ao trustee deve ser exercido sempre em favor do(s) beneficiário(s) designado(s) no ato constitutivo do trust, podendo ou não ser alterado em momento posterior. Assim, diz-se que num trust o trustee detém o direito de propriedade sobre o patrimônio do trust (também chamado de trust fund) e deve exercer esse direito exclusivamente em prol do beneficiário, este detentor de um direito que pode ser chamado de interesse econômico (beneficial interest ou equity interest).” (Planejamento Patrimonial, Soares da Silva, David Roberto R.; Estevam, Priscila Lucenti; Vasconcellos, Roberto P.; Rodrigues, Tatiana Antunes Valente; São Paulo, Editora B18, 2018, pág. 354/5).
O Brasil reconhece uma única pessoa (ou pessoas quando em condomínio) como detentora do direito absoluto de propriedade sobre um determinado bem. O Código Civil (art. 1.228) dispõe sobre quatro direitos essenciais e inerentes à propriedade, sendo eles os direitos de:
- Usar o bem da forma como lhe bem entender (ex,. dirigir um automóvel, morar num imóvel);
- Explorar (fruir) o bem (ex., alugar o bem e receber aluguel, cultivar a terra e e vender a produção);
- Vender (dispor) o bem a quem quiser comprá-lo; e
- Defender (reaver) o bem contra terceiros (ex., reaver em caso de posse ilegal, invasão de imóvel etc).
Terceiros podem deter alguns desses direitos inerentes à propriedade de forma temporária ou permanente, mas isso não lhes torna proprietário. É o caso do locatário, por exemplo, que terá o direito de uso (posse) pelo tempo de duração do contrato de locação, mas não poderá vendê-lo, sublocá-lo (se não autorizado em contrato) ou defendê-lo contra terceiros.
O usufruto é outro exemplo: o usufrutário pode explorar (fruir) o bem sobre o qual possui o usufruto, podendo, inclusive alugá-lo a terceiro; mas não pode vendê-lo, pois esse direito de vender (dispor) é exclusivo do proprietário (denominado nu-proprietário).
Outros países adotam regime legais diferentes quanto ao direito de propriedade, como pode ocorrer com aqueles de tradição na common law. Neles, uma pessoa pode ser considerada proprietária perante a lei e outra ser detentora de outro tipo de direito sobre o mesmo bem, limitando o direito do proprietário legal.
É exatamente isso que ocorre com os trusts, nos quais um beneficiário pode pleitear certos direitos perante o trustee (gestor do trust) apesar de a titularidade dos bens do trust pertencer ao trustee, devendo ele (trustee) lidar com esse bem dentro das regras estabelecidas pelo seu criador (settlor).
Em linhas gerais, no trust tem-se o trustee como proprietário do bem, mas esse direito de propriedade é limitado por um outro direito (interesse econômico) detido por outra pessoa (beneficiário), pois assim desejou o settlor. Para alguém que vive no Brasil e acostumado com o nosso direito de propriedade, pode parecer estrando alguém ser o dono legal de um bem do qual não pode se beneficiar e que o real beneficiário é alguém cujo nome não figura como proprietário.
Aos mais desavisados, pode parecer a legitimação do “laranja”, tão combatido por nossas autoridades judiciais e policiais…
Mas essa é a realidade do trust, amplamente utilizado em dezenas de países pelo mundo, sem necessariamente envolver intenção ou prática criminosa. É bem verdade que já vimos nas páginas policiais brasileiras, pessoas utilizando trusts para esconder dinheiro obtido ilegalmente, mas isso é um desvio de finalidade, uma exceção e não a regra. Normas de transparência internacional e de reporte financeiro implantadas nos últimos anos dificultaram muito esse tipo de prática criminosa.
Para um trust ser validamente constituído, três são seus elementos essenciais:
- A declaração de vontade do settlor determinando as regras aplicáveis, poderes e deveres, direitos e obrigações do trustee, as regras de administração, duração, beneficiários etc;
- A definição dos bens que integrarão o fundo do trust e regras para a sua gestão; e
- A transferência dos bens para a titularidade do trustee.
O beneficiário é tratado como detentor de certos direitos sobre fundo do trust, ainda que os bens pertençam legalmente ao trustee. A genialidade do trust está na possibilidade de uma pessoa, o trustee, controlar legalmente um bem ao mesmo tempo em que é concedido um benefício econômico sobre esse ativo a uma outra pessoa, o beneficiário. Esse benefício econômico não deve ser confundido com a disponibilidade econômica ou jurídica que autoriza a incidência do imposto de renda no Brasil. Podem ser expressões aparentemente similares mas, juridicamente, são completamente distintas. O fato de alguém ser beneficiário de um trust significa que essa pessoa faz parte de uma lista de pessoas, criada pelo settlor, que pode vir a receber algo do trust.
A extensão do benefício econômico de um beneficiário não depende deste beneficiário, não precisa de seu consentimento ou mesmo ciência, e tampouco é uniforme ou padronizado. No momento da criação do trust, o settlor é livre para a extensão desse direito, desse “interesse econômico” sem qualquer interferência por parte do beneficiário.
O trust pode ser utilizado para a resolução de uma série de problemas das mais diversas naturezas, fazendo com que possa assumir uma gama quase ilimitada de modalidades distintas. Infelizmente, no Brasil, ainda estamos nos primeiros estágios para entender e aplicar o trust como instrumento de planejamento sucessório, valendo dizer que não ele não pode ser instituído no Brasil.
Alguém interessado em criar um trust para seu planejamento sucessória deverá, primeiramente, organizar seu patrimônio de maneira que permita que ele seja, por fim, detido por um trust instituído no exterior. Mas esta organização patrimonial deve ser feita de maneira criteriosa e adequada para não ferir direitos de herdeiros e aspectos relevantes das leis brasileiras. Mas, sem dúvida, é uma ferramenta poderosa e muito útil em diversas situações.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.