Por David Roberto R. Soares da Silva
Numa decisão inusitada, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a validade de um testamento “assinado” pelo testador com sua impressão digital. A decisão parece confirmar uma tendência judicial para flexibilizar os rigorosos requisitos da lei sobre o tema, quando seja inequívoca a vontade do testador.
O art. 1.862 do Código Civil estabelece que são três as formas ordinárias de testamento, a saber: o público, o cerrado e o particular. Enquanto o primeiro é lavrado em cartório por meio de escritura pública, o último (particular) é aquele feito de próprio punho ou por meio mecânico, assinado pelo próprio testador. O testamento cerrado é um testamento particular aprovado por um tabelião e por ele lacrado, observadas algumas formalidades.
Por ser um documento que expressa a vontade de alguém, mas que somente produzirá efeitos depois de sua morte – impossibilitando a confirmação dessa vontade – o testamento sempre foi cercado de formalidades rígidas, cuja inobservância sempre foi causa de nulidade.
No caso do testamento particular, o art. 1.876 do Código Civil estabelece os seus requisitos mínimos, valendo a sua transcrição:
“Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico.
§ 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever.
§ 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.“
Assim, pela letra fria da lei, um testamento particular que não observe essas regras não será válido por falta dos seus requisitos essenciais.
Com esse entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou a validade de um testamento que não fora assinado pelo testador, mas contara com a aposição de sua impressão digital.
Analisando um recurso contra a decisão do tribunal mineiro, o STJ reconheceu validade do testamento. Para o STJ, embora o testador possuísse limitações físicas que o impossibilitavam de assinar o testamento particular, não contava ele com nenhuma limitação cognitiva que o impedisse de expressar a sua vontade e entender o conteúdo do documento.
Com esses argumentos, o Tribunal Superior flexibilizou as rígidas regras do Código Civil quando ficou inequivocamente comprovada a real vontade do testador. A decisão também é importante porque unifica o entendimento da Corte sobre o tema, dado que algumas decisões anteriores de turmas da 2ª Seção foram em sentido contrário, ou seja, pela invalidade do testamento que não contivesse a assinatura do testador.
Vale transcrever trechos do acórdão:
“(…) 7- A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador.
8- Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva.” (Recurso Especial nº 1.633.254-MG, julgamento em 11.03.2020).
Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi ainda pontuou o seguinte:
“Não deve o Poder Judiciário se imiscuir nas disposições testamentárias do de cujus, senão naquilo que for estritamente necessário para que se confirme, estreme de dúvidas, que a disposição dos bens retratada no documento é aquela efetivamente desejada pelo testador.
Significa dizer, pois, que as detalhadas formalidades previstas na legislação civil devem ser interpretadas à luz dessa diretriz máxima e desse princípio informador e norteador dessa modalidade de sucessão. Logo, não se pode, somente pela forma, prejudicar o conteúdo do ato de disposição quando inexistir dúvida acerca da própria manifestação de vontade do declarante.
(…) É no mínimo paradoxal, pois, que ainda se exija, em alguns outros poucos negócios jurídicos, o papel e a caneta esferográfica sem que haja justificativa teórica, prática e jurídica plausível, simplesmente porque sim, porque é a praxe e a tradição. Admite-se a transferência de valores milionários por intermédio de um clique, mas não se admite a disposição de última vontade de um bem somente pela ausência de uma formalidade, a despeito de inexistir dúvida sobre a vontade da testadora.
(…) O testamento de NILZA foi assinado a rogo e contou com a aposição de sua impressão digital, sendo que as testemunhas, sobre as quais não recai absolutamente nenhuma suspeita ou questionamento, confirmaram, inclusive quando ouvidas em juízo, o cumprimento das demais formalidades e, sobretudo, que aquela era mesmo a manifestação de última vontade de NILZA.
A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador.“
A despeito de a decisão do STJ tratar sobre a falta de assinatura num testamento particular, os fundamentos utilizados pelo Tribunal podem ter consequências importantíssimas para além daquele processo.
O ponto central da decisão para admitir a validade do testamento com a impressão digital do autor foi a inexistência de dúvidas quanto à real vontade do testador, confirmada com o depoimento das testemunhas presentes ao ato. Expandindo essa ideia para outras mídias, por que não se admitir que testamentos sejam feitos em outras mídias que também permitam verificar com segurança a real vontade do testador?
Não se pode esquecer que embora relativamente recente (2002), o Código Civil se baseou num projeto de lei de 1975, época em que, se os computadores ainda eram raros no Brasil, os meios digitais eram coisa de ficção cientifica. A decisão do STJ é um marco importante, mas talvez seja apenas o início de uma mudança mais radical de paradigma com relação a certos atos da vida civil, neles incluído o testamento, um dos atos mais formais que temos no nosso Direito. O recém-criado sistema virtual e-Notariado, para serviços cartoriais e de registro, aliado às restrições de convívio social advindas da pandemia da Covid-19, podem dar impulso a novas formas para a celebração de atos da vida civil, tais como os testamentos.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.