Por David Roberto R. Soares da Silva e Felipe Pereira Louzada
Recentemente, tivemos a oportunidade de assessorar um contribuinte durante fiscalização da Receita Federal sobre sua adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), a conhecida “repatriação”. O fisco buscava determinar a origem lícita dos ativos declarados pelo contribuinte nas duas fases do programa de regularização. O resultado foi extremamente positivo, como veremos a seguir.
O caso se mostrou desafiador desde o início, pois o contribuinte fizera a adesão ao RERCT em duas etapas, regularizando parte de seu patrimônio no primeiro programa (em 2016, com base nos ativos existentes em 31.12.2014) e o restante no segundo programa (em 2017, com base nos ativos existentes 30.06.2016). Além disso, a regularização foi feita mediante declarações genéricas, sem qualquer assessoria legal, sendo informada “prestação de serviços” como origem (lícita) dos recursos.
Quando intimado para comprovar a origem lícita dos recursos, o contribuinte nos procurou desesperado, pois a origem dos recursos não estava muito bem documentada.
Ao analisarmos a documentação do contribuinte, verificamos que a origem dos ativos não seria o único alvo da fiscalização. O contribuinte havia declarado quotas de uma empresa como conta corrente em uma das fases do RERCT.
O primeiro termo de intimação fiscal solicitava documentação comprobatória de identificação e domicílio do contribuinte, cópias dos recibos de entrega das DERCATs, extratos bancários do período 2014-2016, em atendimento ao artigo 4º, §§ 6º e 8º da Lei nº 13.254/2016.
Toda a documentação solicitada foi apresentada.
Passado algum tempo, a Receita Federal enviou nova intimação fiscal solicitando documentos comprobatórios acerca da evolução patrimonial das empresas mantidas no exterior para o período de 2009 a 2014, além de esclarecimentos sobre as atividades financeiras do contribuinte.
À esta intimação, informou-se que as empresas no exterior foram regularizadas na segunda fase do RERCT, regida pela Lei nº 13.428/2017, cujo art. 2º alterou a data referência para a declaração voluntária da situação patrimonial estática do contribuinte de 31 de dezembro de 2014 para 30 de junho de 2016.
Na oportunidade, sustentou-se inexistir previsão legal para a apresentação de documentos anteriores a data-base da declaração (30.06.2016). Ainda que assim não fosse, sustentou-se que a exigência de tais extratos e balanços em 2020 não era mais possível, dado que alcançados pela decadência tributária, nos termos do Código Tributário Nacional.
Quanto à origem dos recursos, a resposta foi no sentido de que a atividade financeira do contribuinte era considerada lícita, condição sine qua non para a regularização dos ativos mantidos no exterior, sendo obrigação legal da Receita Federal provar o contrário.
Não se dando por satisfeito, o fisco intimou o contribuinte pela 3ª vez requerendo os balanços patrimoniais das empresas no exterior que referendavam as informações inseridas nas DERCATs, assim como comprovantes da prestação de serviço, declarada como origem lícita dos recursos regularizados.
Em resposta à intimação fiscal, esclareceu-se que os países nos quais as empresas regularizadas estavam sediadas (Ilhas Virgens Britânicas e Panamá) não exigiam contabilidade obrigatória na data-base da DERCAT e que, por esta razão, o contribuinte levantara balanços patrimoniais pro forma por contabilista habilitado no Brasil, os quais refletiam a posição do patrimônio líquido das empresas na data-base da DERCAT. A validade desses balanços pro forma encontrava respaldo na resposta à Pergunta 37 do “Dercat – Perguntas e Respostas” que dispõe assim:
“37) A documentação contábil-financeira a ser mantida por declarante no caso de trusts e a documentação, a ser mantida por declarante, de demonstrações financeiras, de determinação de todos os investimentos diretos e indiretos realizados através de offshore companies ou entidades assemelhadas, deverão ser preparadas de acordo com quais princípios contábeis?
A documentação contábil-financeira concernente aos trusts deverá ser confeccionada de acordo com os princípios contábeis da jurisdição do trustee. As demonstrações financeiras relacionadas aos investimentos diretos e indiretos em offshore companies ou entidades assemelhadas deverão ser elaboradas de acordo com os princípios contábeis da jurisdição em que se localiza cada uma das offshores companies ou entidades assemelhadas e assinadas por profissional habilitado para tanto. Em ambos os casos, seja no que concerne a trusts ou a offshore companies ou entidades assemelhadas, alternativamente, a documentação contábil-financeira e as demonstrações financeiras poderão ser preparadas de acordo com os princípios contábeis vigentes no Brasil, desde que assinadas por profissional habilitado para tanto.“
Para a comprovação da prestação de serviços como origem lícita dos recursos regularizados, o contribuinte esclareceu que boa parte de seus recursos provinham de atividades de assessoria de clientes estrangeiros em operações de comércio exterior. Essas atividades consistiam em receber pedidos de produtos de clientes estrangeiros, procurar fornecedores no mercado local, obter e enviar cotações, auxiliar nas negociações, cotar fretes internacionais e coordenar o envio dos produtos até o seu embarque.
Embora já não mais exercesse essas atividades quando da adesão do RERCT, o contribuinte logrou demonstrar ao fisco o exercício da sua atividade por meio de troca de mensagens com clientes que mostravam pedidos de cotação de produtos e fretes, informações sobre embarques, cópias de documentos de embarques, ordens de pagamento dos produtos, negociações de comissões devidas, fotos de embarques, dentre outros.
Vale esclarecer que para várias operações o contribuinte não possuía dossiês completos, em alguns casos, para serviços prestados mais de uma década antes da adesão ao RERCT.
Recentemente, o contribuinte foi surpreendido com a confirmação de que o procedimento fiscal do RERCT foi definitivamente arquivado, sem sua exclusão do programa.
Entendemos que a decisão de arquivar o procedimento fiscal corrobora com algumas teses levantadas durante a fiscalização, valendo destacar a questão da demonstração do patrimônio estático nas datas-bases dos programas, ao menos para a regularização de empresas offshore e a ocorrência da decadência para entrega de documentos anteriores a cinco anos da data da regularização.
O bom senso fiscal também prevaleceu na investigação da origem dos recursos, não se exigindo comprovação detalhada de cada operação, mas aceitando os documentos existentes como indício suficiente de licitude das operações do contribuinte, genericamente consideradas.
Espera-se que a Receita Federal mantenha esse bom senso sobre todas as fiscalizações que versam sobre este tema, reduzindo o sentimento de insegurança jurídica causado pela confusa redação da Lei nº 13.254/2016 e os diversos atos normativos e manifestações fiscais dela derivados.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
Felipe Pereira Louzada é associado do Battella, Lasmar & Silva Advogados em São Paulo e coautor do e-book Saída Definitiva do País – Guia Prática das Obrigações Tributárias, publicado pela Editora B18.