Por Tatiana Antunes Valente Rodrigues
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) reconheceu a existência de união estável com consequente direito à pensão, feito por uma mulher que afirmava ter vivido por 40 anos com um homem casado (já falecido). A decisão é interessante dado que, durante todo o período do relacionamento, a esposa do falecido tinha do relacionamento paralelo.
A decisão, que confirmou o teor da sentença de primeiro grau, preservou o interesse e a proteção de ambas as células familiares, destacando que o formalismo legal não deveria prevalecer sobre a situação fática. Isso porque, diante da comprovação de estabilidade, reconhecimento público da união e coabitação, a relação familiar, que gerou uma filha inclusive, demonstrou claramente a existência de uma união estável paralela ao casamento civil, a despeito da vedação legal.
De fato, o Código Civil (arts. 1.723 e 1.724) estabelece que, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) publicidade; (ii) continuidade; (iii) durabilidade; (iv) objetivo de constituição de família; (v) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial e (vi) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos.
Contrariamente à crença popular, não existe há exigência legal com relação ao tempo de convivência, nem à coabitação.
Na prática, a análise dos requisitos para configuração da união estável deve ser feita caso a caso, centrando-se na conjunção dos fatores presentes em cada hipótese, seja ou não em casos de relações simultâneas.
Vale transcrever a decisão do TJSC:
“O ordenamento jurídico estabelece como pressupostos ao reconhecimento da união estável: […] (b) coabitação; (c) convivência pública, contínua e duradoura; e, (d) o objetivo de constituir família. ‘(TJSC, Apelação Cível n. 2015.016275-3, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa)” (TJSC, Apelação Cível n. 0304749-54.2015.8.24.0054, rel. Des. Jorge Luis Costa Beber). –
– O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado” –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída’ (REsp 1454643/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze) (AC n. 0001906-83.2013.8.24.0015, rel. Des. André Carvalho)” (TJSC, Apelação Cível n. 0011301-16.2013.8.24.0075, rel. Des. Carlos Roberto da Silva).
– “Ressalvadas as uniões estáveis de pessoas casadas, mas de fato separadas, uma segunda relação paralela ou simultânea ao casamento ou a outra união estável é denominada concubinato e não configura uma união estável, como deixa ver estreme de dúvidas o artigo 1.727 do Código Civil.” (MADALENO, Rolf. Direito de Família. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 15 e ss).
– “Tem-se dito reiteradas vezes que a importância constitucional conferida às entidades familiares constituídas por uniões estáveis e os relevantes direitos atribuídos aos conviventes, na esfera pessoal e patrimonial, exigem que os requisitos de convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família estejam palpitantes na prova dos autos, não se podendo declarar a união estável em situações dúbias, contraditórias, ou em que a prova se mostre dividida – esta prova não há nos autos” (TJRS, Apelação Cível n. 70053975140, rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos). (TJSC, Apelação Cível n. 0310137-76.2015.8.24.0008, de Blumenau, rel. Rubens Schulz, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 02-07-2020).
Na decisão, foi observada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que consolidou entendimento no sentido da possibilidade de reconhecimento da união estável simultânea ao casamento, desde que haja separação de fato ou judicial entre os casados.
No entanto, no caso analisado pelo TJSC, a questão da existência de relações simultâneas vai muito além. A realidade fática e caráter afetivo das relações deve ser levado em consideração, para, inclusive, não permitir que relações reais tenham seus efeitos jurídicos negados por conceitos legais não atualizados com a realidade.
A mera aplicação da lei, sem levar em consideração a realidade tida pelas partes e o envolvimento afetivo, não é apta a acompanhar a evolução das relações que envolvem o Direito de Família.
Esse campo do direito vem passando por inúmeras transformações para se adequar às novas estruturas sociais existentes no país.
Como exemplo, vale citar, o reconhecimento jurídico e a possibilidade de casamento em relacionamentos homoafetivos, o reconhecimento da multiparentalidade, e até mesmo a discussão sobre a possibilidade ou não de relacionamentos poliafetivos.
A Constituição Federal destina proteção especial do Estado às famílias, independentemente se formadas ou não pela vigência de um casamento.
E a liberdade vinculada a essas novas modalidades existentes no Direito de Família também devem ser recepcionadas pelo ordenamento jurídico brasileiro (como as famílias simultâneas, por exemplo), priorizando a proteção de toda e qualquer forma de família e garantindo seus efeitos jurídicos.
A existência de uniões afetivas plurais, múltiplas, simultâneas e paralelas têm sido cada vez mais frequentes no cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos e, muitas vezes, com colisão de interesses entre as partes.
Embora a questão seja controversa na doutrina e na jurisprudência, é unanime a posição de que a boa-fé deve guiar também as relações afetivas, de modo que a aplicação do art. 1.727 do Código Civil (concubinato) ficaria restrita às situações dissociadas de afeto ou sem a intenção de conviver como família.
Por isso a importância da demonstração de estabilidade na convivência, a publicidade e afetividade.
A boa-fé e a comprovação dos demais requisitos da união estável hão de garantir às pessoas envolvidas os efeitos jurídicos decorrentes dessa união, a despeito do disposto na legislação vigente.
Ainda existem muitas divergências na doutrina e na jurisprudência com relação à aceitação ou não de relações paralelas e concomitantes, mas a tendência apresentada em decisões judciais recentes demonstram que os Tribunais estão cada vez mais atentos às peculiaridades apresentadas em cada caso, buscando decidir com base na boa-fé, solidariedade, afetividade, liberdade, igualdade para garantir efetividade jurídica a esses novos arranjos familiares.
Ignorar tais arranjos familiares, em suas infinitas incursões, em que núcleos afetivos e sociais se justapõem, em relações simultâneas, paralelas ou concomitantes, seria o mesmo que negar os efeitos jurídicos ao que acontece na realidade de muitas famílias brasileiras.
Tatiana Antunes Valente Rodrigues é advogada especialista em direito de família, sucessões e planejamento patrimonial, associada sênior do Lopes Domingues Advogados, e coautora do livro Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, publicado pela Editora B18