Por David Roberto R. Soares da Silva
Em planejamento patrimonial e sucessório é comum pensarmos de forma binária – vida e morte –, fazendo com que adotemos ferramentas para essas duas situações. Mas há uma zona cinzenta – que pode durar muitos anos, – sobre a qual pouca gente se prepara: a incapacidade. Mas mesmo para ela há ferramenta que podem ser de grande utilidade. Trataremos sobre uma delas.
A autocuratela é um instrumento jurídico que permite a uma pessoa ainda capaz planejar antecipadamente sua própria curatela, caso venha a se tornar incapaz no futuro. Baseado em diversos dispositivos legais da lei brasileira, este mecanismo de proteção oferece uma forma de preservar a autonomia individual e garantir que os desejos e preferências da pessoa sejam respeitados, mesmo em uma situação de incapacidade.
A autocuratela surge como uma resposta à crescente preocupação com o envelhecimento populacional e o aumento de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, doença de Huntington, de Príon e as variações de demência, para ficar apenas naqueles que causam incapacidade neurológica. Com o avanço da medicina e o prolongamento da expectativa de vida, torna-se cada vez mais comum que pessoas enfrentem períodos – curtos ou mais longos – de incapacidade antes do fim da vida.
No Canadá, especialmente na província de British Columbia, existe o Representation Agreement Act desde 1996. Esta lei permite que pessoas com deficiência nomeiem representantes para tomar decisões em seu nome sobre vários assuntos, sem necessidade de intervenção judicial. Outras províncias canadenses, como Saskatchewan, Alberta, Manitoba e Yukon, têm mecanismos similares. Na Austrália, existem instrumentos como o Enduring Power of Attorney e o Enduring Guardianship, que permitem que uma pessoa nomeie alguém para tomar decisões em seu nome caso se torne incapaz no futuro.
O Brasil não possui uma legislação específica sobre autocuratela, sendo ela uma construção jurídica a partir da interpretação e aplicação de princípios constitucionais e de dispositivos legais em vigor. A discussão sobre o tema ganhou força após a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015, ou EPD) e as alterações no Código Civil que trouxeram uma nova perspectiva sobre a capacidade civil e a curatela.
A autocuratela encontra respaldo nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e da autonomia da vontade privada, que são pilares do ordenamento jurídico brasileiro. Esses princípios garantem o direito de autodeterminação e o respeito às escolhas individuais. Por sua vez, o Art. 1.767 do Código Civil, alterado pelo EPD, estabelece que estão sujeitos à curatela aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. A autocuratela, assim, se apresenta como uma forma de expressar essa vontade antecipadamente.
O Art. 84, §1º do EDP prevê que “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei“.
Para quem não conhece, a curatela é um instituto jurídico que visa proteger e assistir pessoas maiores de idade que, por alguma razão, não têm plena capacidade de exercer os atos da vida civil. Trata-se de um encargo atribuído por um juiz a uma pessoa capaz (o curador) para que ela zele pelos interesses pessoais e patrimoniais de outra que se encontra impossibilitada de fazê-lo por si mesma (o curatelado). Este mecanismo legal é aplicado em casos específicos, como para pessoas com enfermidades ou deficiências mentais que comprometam o discernimento, indivíduos que não possam exprimir sua vontade por causa duradoura, ébrios habituais, viciados em tóxicos e pródigos. A curatela tem caráter excepcional e deve ser proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso, afetando apenas os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, preservando ao máximo a autonomia do curatelado em questões existenciais.
A autocuratela se alinha com o espírito legislativo atualmente em vigor no Brasil, que busca promover a autonomia e a participação da pessoa com deficiência nas decisões que afetam sua vida.
Em termos práticos, a autocuratela permite que uma pessoa ainda capaz elabore um documento por meio do qual estabeleça o seu desejo de que, na sua incapacidade, um juiz nomeie uma determinada pessoa para ser seu curador, estabelecendo, ainda, as diretrizes para a administração de seus bens.
A autocuratela supre uma lacuna que outros instrumentos jurídicos não oferecem. No caso de uma procuração, o Art. 682 do Código Civil estabelece que a incapacidade de qualquer uma das partes é causa de extinção dos poderes. Ou seja, caso uma pessoa se torne incapacitada e colocada sob curatela, pela letra da lei, os poderes outorgados em uma procuração cessam de existir, podendo causar a nulidade dos negócios praticados pelo procurador. Por outro lado, o testamento não entra em ação enquanto o testador estiver vivo.
Além disso, há que se ressaltar que o Código Civil estabelece uma ordem prioritária para a função de curador, que, em princípio, será respeitada se não houver nada que diga o contrário. Em primeiro lugar, temos o cônjuge ou companheiro, depois os ascendentes (pais), e, por fim, o descendente mais apto. É o que diz o Art. 1.775 do Código Civil e seus parágrafos, senão vejamos:
Art. 1.775. O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.
§1 o Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.
§ 2 o Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.
Vale notar o silêncio da lei quanto aos irmãos…
Ora, podem existir muitas situações em que seguir essa ordem, ou mesmo ter algum parente nomeado curador, não seja mais adequado. Uma pessoa que mantenha sociedade com seus irmãos pode não desejar que seu cônjuge a represente na empresa. Da mesma forma, um pai ou mãe pode não querer que um determinado filho seja o seu curador para assuntos financeiros, caso haja alguma desconfiança sobre a sua capacidade de tomar decisões financeiras, ou mesmo sobre sua honestidade.
Com a autocuratela, uma pessoa ainda capaz poderá fazer constar quem deseja que seja o seu curador em caso de incapacidade, e a extensão dos poderes dessa curadoria, sendo desejável que justifique a sua escolha caso ela não siga a regra do Art. 1.775 do Código Civil.
Do ponto de vista prático, a autocuratela deve ser formalizada por meio de escritura pública, lavrada em Cartório de Notas, em que constarão as diretrizes para a administração futura dos bens e a nomeação de um ou mais curadores. Um aspecto crucial da autocuratela é que o declarante deve ter discernimento no momento da elaboração do documento. Por isso, quando o declarante se encontra acometido de uma doença neurodegenerativa em estágio inicial, é recomendável anexar laudo médico confirmando a higidez mental do declarante e a sua capacidade de entender as escolhas feitas para serem implementadas em uma futura ação de curatela.
Embora não seja uma condição para a validade do ato, e sempre que possível, é recomendável que ao ato de lavratura da escritura de autocuratela compareçam o cônjuge (ou companheiro), e os filhos do declarante, e que eles anuam com os seus termos. Essa providência tem por objetivo diminuir as chances de conflitos futuros quando do acometimento da incapacidade, com alegações de violação do Art. 1.775 do Código Civil.
Além da nomeação do futuro curador, a autocuratela pode estabelecer as diretrizes para a futura administração do patrimônio. Nada impede que o declarante nomeie mais de um curador para cuidar de vários aspectos de sua vida patrimonial. Por exemplo, pode-se nomear um irmão como curador para assuntos empresariais na empresa familiar, ao passo que o cônjuge ou um filho maior pode ser nomeado como curador para assuntos relacionados às finanças pessoais, aos cuidados médicos, ou mesmo à gestão do patrimônio já adquirido. Também é possível estabelecer cláusulas específicas, como aquela que expressa a vontade de que algum imóvel não seja vendido, mas sim utilizado para locação e geração de renda para o custeio das despesas.
Ou seja, por meio da escritura de autocuratela é possível ao titular do patrimônio determinar não apenas quem irá administrar seus bens, mas como deve ser feita essa administração. Assim, ela acaba se relevando como uma ferramenta interessante de planejamento patrimonial.
É importante dizer que as diretrizes da autocuratela somente passam a ser válidas a partir do momento em que for verificada a incapacidade do declarante por meio de uma declaração judicial em um processo de curatela. Ou seja, ela não possui a capacidade de outorgar poderes imediatos de representação ao curador, como uma procuração, sendo necessário, primeiro, atestar a ocorrência da incapacidade. A própria escritura pode estabelecer quais os médicos que, preferencialmente, poderão atestar essa incapacidade, especialmente se eles já estiverem envolvidos no acompanhamento médico do declarante.
Mesmo assim, será necessária a intervenção judicial, por meio de ação judicial própria (de curatela), para que um juiz, verificando os fatos e levando em consideração as diretrizes estabelecidas na autocuratela, nomeie o curador indicado pelo declarante e valide os atos que o curador poderá praticar.
Por fim, ponto que merece muita atenção é a forma como será preservada a escritura de autocuratela a fim de que seja trazida ao juiz para a validação de seus termos e nomeação do curador escolhido. Diferentemente do testamento por escritura pública, cuja apresentação no inventário é garantida por força do registro de sua existência no Registro Central de Testamentos, a escritura de autocuratela ainda não possui a mesma garantia, dependendo de um ato humano para que trazida a um juiz. Assim, é recomendável que cópias ou vias originais sejam deixadas com pessoas de confiança, incluindo o futuro curador, ou curadores, para que seja garantido o cumprimento das diretrizes do futuro curatelado.
Comparado com outros países, ainda estamos dando os primeiros passos para pensar seriamente sobre a autocuratela, que se releva uma poderosa ferramenta para garantir a gestão do patrimônio da forma que deseja o seu titular. Talvez por questões culturais, não estamos acostumados a pensar em podemos estar sujeitos a situações que nos incapacitem para o exercício de nossos direitos, notadamente a administração de nossos bens. No entanto, não pensar e não agir não resolve o problema.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.