Por David Roberto R. Soares da Silva
Pouco conhecida ou pouco divulgada, a fundação privada estrangeira é uma ferramenta poderosa de planejamento patrimonial e sucessório, especialmente quando o objetivo primordial é a proteção e transmissão adequada do patrimônio para mais de uma geração futura.
A fundação privada estrangeira para uso em planejamento patrimonial e sucessório internacional está presente na legislação de vários países, como Liechtenstein, Bahamas, Curaçao, Malta e Panamá, entre outros. Alguns estados americanos também admitem o uso de fundações privadas para fins de planejamento, mas o mais comum nessas localidades é a utilização do trust.
Embora a lei brasileira também contemple fundações, elas possuem propósitos totalmente distintos das fundações estrangeiras e não podem ser utilizadas em planejamento patrimonial. A fundação, no Brasil, é regulada pelo Código Civil, que limita a sua utilização apenas para finalidades públicas, sociais ou caritativas. É o que determina o Art. 62 do lei civil, nestes termos:
Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.
Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins de:
I – assistência social; (Incluído pela Lei nº 13.151, de 2015)
II – cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
III – educação;
IV – saúde;
V – segurança alimentar e nutricional;
VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;
VII – pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos;
VIII – promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos;
IX – atividades religiosas.
Além disso, a fundação regida pela lei brasileira fica sob a supervisão do Ministério Público que tem o dever de fiscalizar suas ações e o cumprimento de seus objetivos e finalidades. Assim, temos que a fundação brasileira não se presta às finalidades do planejamento patrimonial e sucessório, de natureza estritamente privada.
É possível vislumbrar, no entanto, certas semelhanças entre a fundação privada estrangeira e a fundação brasileira. Entre elas, vale citar a existência de personalidade jurídica própria, a formação de um patrimônio autônomo cujo capital não é dividido em quotas de capital ou ações, e a administração por meio de um conselho que não representa o fundador, mas os interesses e propósitos da própria fundação. Mas as semelhanças param por aí, especialmente se considerarmos as suas finalidades, pois a fundação privada estrangeira pode servir a propósitos privados (de uma família, por exemplo), o que não ocorre com a fundação brasileira.
As fundações privadas estrangeiras podem ter objetivos variados, como alocação internacional de investimentos financeiros, holding de empresas operacionais e de ativos diversos, proteção contra credores e planejamento patrimonial e sucessório. As suas características peculiares nos permitem dizer que a fundação estrangeira conjuga elementos que as aproximam e as distanciam tanto das empresas offshore como dos trusts.
Em apertada síntese, elas proporcionam as vantagens da offshore, com personalidade jurídica, ao mesmo tempo que embutem aspectos fiduciários de um trust com relação à perpetuação, proteção e transmissão de patrimônio, sem as agruras que um inventário traz quando do falecimento do seu instituidor (fundador). Curiosamente, as fundações estrangeiras ainda não se popularizaram no Brasil, não obstante as suas vantagens patrimoniais e sucessórias. Com o advento da Lei nº 14.754/2023, as fundações podem apresentar certas vantagens tributárias, embora ainda seja cedo para dizer como o fisco irá interpretar as características da fundação sob a nova lei, especialmente depois do passamento de seu fundador.
Mesmo sob regramentos diferentes em cada país que as admitem, as fundações privadas possuem vários elementos em comum, sendo possível dizer que se trata de uma pessoa jurídica autônoma sem divisão de capital, com organização e administração próprias, cujo objetivo é realizar um ou mais propósitos específicos por meio de patrimônio recebido de seu fundador. A fundação privada é uma pessoa jurídica autoadministrada, gerida por um conselho, de acordo com as regras e finalidades estabelecidas em seus atos constitutivos e na lei do seu país de registro.
A fundação apresenta atributos tanto de um trust quanto de uma empresa, extraindo o melhor desses dois institutos para se apresentar como uma estrutura híbrida e flexível que atende múltiplos objetivos, tanto sob a perspectiva do planejamento patrimonial e sucessório como para deter ativos e realizar investimentos. Com o trust, a fundação apresenta as mesmas características fiduciárias por meio da confiança depositada no seu conselho (como o trustee em um trust) para a gestão do patrimônio, conforme as orientações estabelecidas pelo fundador, podendo ultrapassar mais de uma geração.
Mas ela difere significativamente do trust por ser uma pessoa jurídica formalmente constituída perante uma autoridade no seu local de sede. Ao contrário do trust, cuja existência decorre de um contrato particular entre o instituidor e o trustee, sem resultar na formação de uma pessoa jurídica, a fundação detém personalidade jurídica própria, com direitos e obrigações legalmente estabelecidos, semelhantes aos de uma empresa. Por essa razão, a fundação pode ser proprietária de bens, diferentemente do trust, que, desprovido de personalidade jurídica, tem os seus ativos detidos em nome do trustee, e não do trust em si. Nesse ponto, a fundação se assemelha a uma empresa que detém bens em seu próprio nome.
Vale destacar, por oportuno, que a Lei nº 14.754/2023, ao regular a tributação das empresas offshore e trusts no exterior, equiparou as fundações às entidades controladas (Art. 5º, § 1º) e não aos trusts, regulados no Art. 10 da lei,
A semelhança da fundação com uma empresa offshore também se verifica na forma de representação perante terceiros, que é feita por meio dos membros do conselho da fundação, similar ao que ocorre com os diretores de uma empresa. Já em um trust, a representação é feita na pessoa do trustee, que também é o proprietário dos bens.
A estrutura de capital da fundação é peculiar: o seu capital não é dividido em ações ou quotas e não confere direito de voto a quem quer que seja, inclusive ao seu fundador. Ela é uma pessoa jurídica sem acionistas ou sócios. O capital da fundação pertence exclusivamente a ela e é administrado pelo conselho da fundação de acordo com os seus atos constitutivos. A possibilidade de revogação da fundação, permitindo o retorno do capital ao fundador (semelhante a um trust), não altera a realidade de que o capital, enquanto na fundação, pertence única e exclusivamente a ela mesma.
De forma similar a um acionista controlador de uma empresa, o fundador pode reter poderes de gestão e decisão, mas esses poderes se distinguem daqueles atribuídos ao controlador pois, com a morte do fundador, esses poderes não se transferem aos sucessores, mas simplesmente deixam de existir. A gestão da fundação passa a ser feita exclusivamente pelo seu conselho, de acordo com as regras estabelecidas nos seus atos constitutivos. Aqui vale a ressalva de que, embora, como regra, os poderes do fundador cessem com a sua morte, há exceções em algumas jurisdições.
Uma outra diferença entre a fundação e o trust diz respeito ao seu prazo de duração. Enquanto, como regra, o trust deve ter um prazo final de duração (trust period), a fundação pode ser criada por prazo indeterminado.
Aqueles que podem se beneficiar da fundação são chamados de beneficiários (como nos trusts), sendo usual ter o próprio fundador como o primeiro beneficiário, sendo sucedido por outros beneficiários conforme a nomeação estabelecida nos atos constitutivos. Dada a ausência de divisão de capital em ações ou quotas, os beneficiários não se tornam acionistas ou sócios controladores da fundação, mas apenas detentores de direitos de se beneficiar dos seus ativos ou rendimentos, conforme as regras determinadas pelo fundador.
A possibilidade de se criar regras que serão observadas após a morte do fundador torna a fundação uma ferramenta poderosa de planejamento patrimonial e sucessório, muito mais eficiente do que uma simples offshore, e normalmente menos complicada do que um trust. Além disso, a invalidação de disposição de um estatuto de uma fundação jamais tem como consequência a sua dissolução integral, situação essa que pode ocorrer com um trust em casos extremos, com a entrega dos bens aos beneficiários.
A Lei nº 14.754/2023 incluiu as fundações como entidades controladas no exterior aparentemente por causa da existência de personalidade jurídica própria, como as demais empresas offshore. Ainda que essa escolha possa fazer sentindo em um primeiro momento, especialmente enquanto o fundador estiver vivo, a natureza fiduciária da fundação, depois da morte do fundador, pode apresentar dificuldades no enquadramento tributário dessa entidade aos futuros beneficiários, o que pode abrir oportunidades interessantes de planejamento tributário. Mas esse é tema para outro artigo…
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
EXCLUSIVIDADE EDITORA B18: O ÚNICO LIVRO SOBRE A LEI Nº 14.754/2023.