O Ministério da Fazenda publicou na última semana do dia 22 de abril, a atualização do Perguntas e Respostas sobre a Lei n.º 14.754/23, que trata da tributação dos investimentos no exterior. E, mais uma vez, perdeu-se uma oportunidade de trazer mais segurança aos contribuintes.
Desde a edição da MP 1171 até o lançamento do primeiro Perguntas e Respostas da Lei n.º 14.754/23, grande polêmica toma conta do meio jurídico acerca do debate sobre a contabilização das aplicações financeiras detidas por entidades controladas no exterior, ou seja, as offshore. Já no “D1”, Governo e Receita Federal entendem que a tributação das companhias offshore deve incluir aquilo que não seja resultado efetivo, ou seja, o resultado não realizado, que nada mais são do que “ganhos” decorrentes da variação de valor de mercado dos ativos, que obviamente compõe o patrimônio da empresa, mas não são resultados líquidos em caixa, apenas uma expectativa de direito.
Nesta tocada, o artigo 5.º, §10, inciso I da Lei 14.754/23 diz expressamente que:
“(…) § 10. Os lucros das controladas enquadradas nas hipóteses previstas no § 5º deste artigo serão:
I – apurados de forma individualizada, em balanço anual da controlada, direta ou indireta, no exterior, com exclusão dos resultados da controlada, direta ou indireta, da parcela relativa às participações desta controlada em outras controladas, inclusive quando a entidade for organizada como um fundo de investimento, o qual deverá ser elaborado com observância:
(…)
b) aos padrões contábeis brasileiros, caso esteja localizada em país ou em dependência com tributação favorecida, ou seja, beneficiária de regime fiscal privilegiado de que tratam os arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996;(…)”.
Portanto, a tributação deve seguir os regramentos e balizas dos padrões contábeis brasileiros, os CPCs, e, por consequência lógica, as Normas Internacionais de Contabilidade – IFRS, já que o Brasil a adotou quase em sua integralidade.
Deixando outras discussões até mais profundas de lado, focaremos aqui no malabarismo que o Governo e a Receita fazem para “forçar” o contribuinte a aceitar a sua forma de pensar e tributar as companhias Offshore. Já no primeiro Perguntas e Respostas, do final de dezembro de 2023, o fisco já dizia na Pergunta e Resposta n.º 29 que:
“Como devem ser contabilizadas as aplicações financeiras detidas por entidades offshore, segundo as regras do IFRS e do BR GAAP?
Como regra geral, as aplicações financeiras são contabilizadas a valor justo, com as contrapartidas sendo registradas no resultado do exercício, de acordo com o disposto no CPC 48 e no IFRS 9. As exceções que permitem a contabilização pelo custo amortizado ou pelo valor justo em contrapartida a outros resultados abrangentes são específicas e restritas a modelos de negócios específicos. “
Já neste ponto havia grande discordância, uma vez que não se trata de uma REGRA GERAL a contabilização das aplicações financeiras a valor justo transitando em resultado e, como EXCEÇÃO, a contabilização de alguns poucos ativos a valor justo em contrapartida a outros resultados abrangentes, portanto, transitando no patrimônio líquido da empresa.
A questão posta pelo Fisco e pelo Governo não é binária!
O ponto mencionado fica ainda pior quando, na última semana, o Fisco e o Governo lançam uma segunda versão do Perguntas e Respostas e, alterando várias questões, modificou aquela questão 29, passando-a para o número 32 e inserindo os seguintes comentários:
“Como regra geral, as aplicações financeiras, inclusive participações societárias minoritárias (por exemplo, ações negociadas em bolsa) são contabilizadas a valor justo, com as contrapartidas sendo registradas no resultado do exercício, de acordo com o disposto no CPC 48 e no IFRS 9, tanto no IFRS, quanto no BR GAAP, independentemente do porte da offshore. As exceções que permitem a contabilização pelo custo amortizado ou pelo valor justo em contrapartida a outros resultados abrangentes são restritas a modelos de negócios específicos. A título exemplificativo, ações negociadas em bolsa não devem se enquadrar nessas exceções, sobretudo nos casos em que o modelo de negócios da entidade, a ser verificado na prática (e não somente pela intenção da administração), inclui a compra e venda desses ativos e se a marcação a mercado for relevante para analisar a performance da entidade. Caso o contribuinte entenda que se enquadra em alguma dessas exceções, é importante ter em mente que haverá fiscalização por parte da RFB para verificação do enquadramento e, em caso de incorreção no balanço, haverá a lavratura de auto de infração para cobrança do imposto de renda sobre o lucro não contabilizado, com acréscimo de juros e multa.”
O Governo e o Fisco trazem ameaça clara e direta ao contribuinte que ousar discordar com seu pensamento e posição impositivos. O CPC 48 / IFRS 09, em linhas curtas, trouxe o seguinte advento: simplificou a classificação dos ativos a (i) Custo amortizado e (ii) Valor Justo, tendo duas destinações: Resultado do exercício ou Outros Resultados abrangentes.
Segundo a norma, os ativos financeiros devem ser classificados conforme o (i) modelo de negócios da entidade para gestão de seus ativos financeiros e (ii) características do fluxo de caixa contratual dos ativos financeiros.
O CPC 48 determina que a entidade (e não o Fisco ou o Governo!) deve avaliar seu modelo de negócio não somente através de um único fator ou atividade, mas, sim, considerando toda a evidência relevante disponível. Sobre os investimentos em instrumentos ou ativos patrimoniais, o CPC 48 / IFRS 09 determinou que sejam classificados a VJR (ou seja, valor justo contra resultado), porém, ofereceu ao contribuinte a OPÇÃO de mensurá–los a VJORA se não foram mantidos para negociação (opção de VJORA para instrumentos patrimoniais pode ser útil para empresas que buscam evitar a volatilidade no resultado).
Ou seja, a contabilização de um instrumento patrimonial depende de uma decisão da companhia e do contribuinte e não da imposição do fisco ou do governo, com vistas a uma maior arrecadação. Já para os instrumentos de dívida, o CPC 48 / IFRS 09 impõe uma análise em duas etapas para determinar a categoria apropriada para sua classificação e mensuração:
Nítido, portanto, que a norma contábil brasileira vigente, a qual a própria Lei n.º 14.754/23 e IN RFB n.º 2180/24 fazem menção como regra aplicável à apuração do lucro das Entidades Controladas no Exterior, não navega no sentido de pensamento imposto pelo Governo e pela Receita Federal no Perguntas e Respostas.
A forma como os ativos serão classificados impende mais desgaste e análise de cada caso. Numa perfunctória análise, CONFORME DETERMINAÇÃO DA NORMA CONTÁBIL, quase que a integralidade das Companhias de Investimentos no Exterior seria enquadrada no modelo de mensuração dos ativos ao valor justo por meio de outros resultados abrangentes, com exceção de alguns ativos que, dada sua composição mista, seriam mensurados a valor justo contra resultado.
Assim, não basta que o FISCO simplesmente ameace o contribuinte que não estiver de acordo com o seu entendimento; já que a determinação da mensuração dos ativos de cada companhia é bem mais criteriosa e embasada do que a mera “imposição pública”. A análise vem desde quando aquela estrutura controlada no exterior está incorporada, passando pela análise do seu modelo de negócios, as características do fluxo de caixa contratual dos ativos financeiros e, principalmente, desde quando o contribuinte optou pela forma de contabilização que suas Demonstrações Financeiras.
Ou seja, não é o Fisco ou o Governo quem pode dizer como os ativos de uma companhia no exterior serão tributados. Primeiro, porque a forma de mensuração dos ativos não é uma imposição pública; segundo, porque existem normas contábeis vigentes e que não podem ser derrogadas pela decisão unilateral do Poder Executivo e do Fisco.
Cabe salientar que as normas contábeis estão alinhadas com finanças corporativas e não há pretensão de ser base de impostos. O artigo 43 do CTN trata do fato gerador do imposto na renda e a doutrina pátria mais consolidada considera que ocorre disponibilidade econômica, quando sucede a efetiva percepção ou em dinheiro ou outros valores, ou seja, algum benefício ou auferimento de alguma vantagem econômica. De outra banda, verifica-se a disponibilidade jurídica, quando este recebimento só dependa da manifestação de vontade única do próprio titular contribuinte. Vejamos o que dispõe a norma tributária em comento:
“Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo.”
Neste sentido, a contabilidade poderia utilizar o CPC 32 para tratar do Imposto de Renda Diferido, trazendo mais equidade e dando mais sentido nesta propositura.
Se há uma diferença temporária entre o lucro contábil e o lucro tributável, há IR Diferido, ou seja, existe diferença temporária entre lucro para divulgação e lucro tributável ou prejuízo fiscal. Assim, a tributação seria sobre um lucro efetivamente disponível e não sobre uma expectativa de lucro, evitando um gerenciamento de resultado.
Ou seja, por um ou outro lado, o contribuinte tem resguardo na norma contábil a evitar a tributação de uma ficção. De mais a mais, o discurso do Governo ao tributar os investimentos no exterior foi o de equalizar a tributação entre pessoas físicas e jurídicas e, assim, trazer todos para uma tributação no sistema de caixa.
Porém, neste momento, com a atual posição, o Governo cria uma situação de discriminação em relação àqueles que queiram tributar suas companhias com base em suas Demonstrações Financeiras. Um exemplo bem grosseiro traz à tona o problema: imagine que você invista USD 100.000.00 em ações da Apple em junho de 2024 através de sua offshore. Em dezembro de 2024 estas ações se valorizam e chegam a incríveis USD 1.100.000,00. Mesmo supervalorizadas, você decide segurar as ações e não realizar este lucro, pois crê em outra valorização. Em 31/12/24 teremos um lucro não realizado de USD 1.000.000,00 , porém, zero dólares em caixa e, tão somente uma expectativa de direito sobre este lucro não realizado. E é nesse ponto que o Governo e a Receita entram: por favor, tribute este seu lucro ficto ou será fiscalizado e autuado.
Portanto, entendemos que haverá muita discussão pela frente, com grande possibilidade de judicialização deste ponto ante a clara inflexibilidade do Fisco e do Governo. Espera-se, que o Judiciário esteja pronto e apto tecnicamente para receber estas demandas, que discutirão com certa profundidade as normas contábeis vigentes.
Fabio Lago Meirelles, Advogado formado pela FMU/SP; Pós Graduado em Direito Civil e Processo Civil; LLM em Direito Penal e Processo Penal; Especialista em Planejamento Estratégico pela ADESG/SP – método ESG -; Contabilidade Geral pela FGV e IFRS pela IACAFM / IBEFAC; é head da área de Wealth Planning do Rocca & Zveibil Advogados
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