Por Marianna Keller Lima Coelho
O ordenamento jurídico busca efetividade frente aos novos desafios visando as melhores soluções para a modernidade. Nesta toada, percebe-se que com o desenvolvimento e a globalização das relações, a complexidade da tutela jurídica se ampliou no que se conhece como “bens jurídicos”.
A busca é atender aos anseios e desafios atuais, como a proteção patrimonial, a informatização do meio e o respeito à autonomia privada, cujos reflexos são expressivos na área sucessória.
Atentando-se à evolução, vislumbra-se intensos trabalhos e estudos com intenção de cercear qualquer atentado injusto ao patrimônio privado. Assim, desde a proposição do Projeto de Lei nº 168/2006, há preocupação contra as perturbações de ordem moral ou sob a liberdade/vida do detentor do patrimônio. Não é de hoje que notícias correm os jornais exibindo episódios de pessoas atentando contra a vida outras por interesses meramente escusos e/ou financeiros, situação que ecoava por efetividade do âmago legal.
A família é um bem jurídico amplamente protegido pelo Estado e consagrado no Art. 226, da Constituição Federal. No nível infraconstitucional, a lei civil normatiza a exclusão da qualidade de herdeiro, lato sensu, daquele que atente contra a vida, a integridade e a honra do titular do patrimônio, incluindo cônjuge, companheiro, ascendentes e descendentes.
Como reprimenda, estatui-se a penalidade de exclusão do herdeiro/legatário por indignidade. A espécie de “punição” de ordem sancionatória, incide contra aquele que atenta gravemente contra a vida do titular patrimonial ou de sua família, bem como em outras duas opções trazidas pela codificação.
Até recentemente, a exclusão do herdeiro exigia a conclusão de processo de conhecimento cível no qual a exclusão fosse decretada, ainda que tivesse havido uma condenação na esfera criminal. Em outras palavras, a exclusão de um filho como herdeiro, ainda que tivesse sido condenado na esfera criminal por atentar contra a vida do pai, exigia a conclusão de um processo cível que decretasse essa exclusão na esfera do direito civil.
Agora, em algumas hipóteses, essa exigência do processo civil não se opera mais.
O Projeto de Lei nº 168/2006 foi convertido na Lei nº 14.661/2023, publicada 24.08.2023. A lei acrescenta o Art. 1.815-A ao Código Civil que prevê a exclusão do herdeiro mediante o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Vale a pena transcrever o referido artigo:
“Art. 1.815-A. Em qualquer dos casos de indignidade previstos no art. 1.814, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória acarretará a imediata exclusão do herdeiro ou legatário indigno, independentemente da sentença prevista no caput do art. 1.815 deste Código.”
Diante dessa alteração, para fins de compreensão, vale percorrer se analiticamente as hipóteses do Art. 1.814 com intuito de aceitação dos efeitos da referida modificação. Vejamos o que diz esse dispositivo:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
A primeira disposição legal traz a ilegalidade do ato daqueles que foram autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou agiram em tentativa, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Nesse ponto, trata-se de repressão pela retirada abrupta/fria do elemento jurídico mais caro e valioso do ser humano, sendo que o resguardo da vida e segurança de si ou núcleo supra/intergeracional imediato trata-se de algo inegociável.
Não seria crível conceder ou deixar ao deleite uma monta de bens ou direitos econômicos livres para aquele que consuma, ou tenta, retirar o direito de viver de pessoa tão próxima. Reflete-se que, independentemente de quem seja, o fim de uma vida desencadeia inúmeras perdas no esteio familiar e não há qualquer montante que seja capaz de valorá-la ou remunerar financeiramente tal perda, visto que a dignidade é fundamento basilar da formação do estado brasileiro.
O inciso II do Art. 1.814 exclui da sucessão aquele que faz acusação caluniosa em juízo em face do autor da herança ou que o praticante tenha incorrido em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge/companheiro. Nesta tipificação, os atos de caluniar (imputar falso crime a alguém), difamar (imputar fato falso relevante para o indivíduo – aspecto externo da honra) ou injuriar (ofender a honra em acepção pessoal/íntima) são passíveis de punição.
Por fim, o inciso III trata da exclusão em detrimento daqueles que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. Um caso típico da chamada violência patrimonial. Essa proteção legal visa preservar a declaração de vontade e liberalidade do autor da herança, vez que grupos mais fortes ou armados poderiam tentar fazer valer “outro querer” com base em violência, ameaça ou chantagem para fins totalmente individuais.
Expostas às disposições legais, compreende-se que o objeto de tutela comum concerne à busca de proteção à vida, bem-estar, vontade e desenvolvimento livre dos quereres do autor da herança. Acaso fosse necessário resumir em uma única palavra o cerne de proteção da indignidade seria a liberdade (de ser, querer, existir e determinar).
Antes da modificação legislativa, a jurisprudência reconhecia que a condenação criminal era essencial para a obtenção dos efeitos “declaratórios” e “constitutivos” da indignidade, que seria a base da ação civil que visasse a exclusão do herdeiro. A remoção do herdeiro/legatário do âmbito sucessório clamava pela presença do efeito penal como causa fundante da “penalidade” sucessória à época.
Vale transcrever trecho de decisão do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:
CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE INDIGNIDADE. QUESTÕES AUTÔNOMAS DECIDIDAS NO ACÓRDÃO. IMPUGNAÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 283/STF. INDIGNIDADE POR OFENSA À HONRA DO AUTOR DA HERANÇA. PRÉVIA CONDENAÇÃO NO JUÍZO CRIMINAL. IMPRESCINDIBILIDADE. EXPRESSA DISPOSIÇÃO LEGAL (ART. 1.814, II, 2ª FIGURA, DO CC/2002). CONTEXTO FAMILIAR EM QUE DESAVENÇAS E EVENTUAIS OFENSAS PODEM SER PROFERIDAS. NECESSIDADE, CONTUDO, DE QUE A OFENSA SEJA GRAVE A PONTO DE ESTIMULAR AÇÃO PENAL PRIVADA DO OFENDIDO E CONDENAÇÃO E DECISÃO CONDENATÓRIA PELO JUÍZO CRIMINAL. INTERPRETAÇÃO FINALÍSTICA OU TELEOLÓGICA INAPLICÁVEL NA HIPÓTESE.
[….]
4- Para que seja declarada a indignidade com base no art. 1.814, II, 2ª figura, do CC/2002, é imprescindível, por expressa disposição legal, que o herdeiro ou legatário tenha sido condenado pela prática de crime contra a honra do autor da herança.
5- A imprescindibilidade da prévia condenação criminal também decorre do fato de que, nas relações familiares, é razoavelmente comum a existência de desavenças e de desentendimentos que, por vezes, infelizmente desbordam para palavras mais ríspidas, inadequadas e até mesmo ofensivas. (…)[1]
Em termos práticos, antes do acréscimo do artigo 1.815-A, era necessária a propositura da ação penal para posterior discussão no juízo cível sobre a aplicação das restrições de cunho sucessório.
Com a regra do Art. 1.815-A a exclusão do herdeiro ou legatário indigno se torna automática com o trânsito em julgado da sentença criminal, não sendo mais necessária a propositura de uma longa e demorada ação civil que reconheça a indignidade para fins sucessórios. Assim, o que antes exigia o trânsito em julgado de dois processos (um criminal e outro cível) para a efetiva exclusão de herdeiro/legatário indigno, agora demanda apenas um processo com condenação criminal transitada em julgado.
Por todo o exposto, a nova inclusão legal é muito positiva e reduzirá o tempo de angústia dos demais herdeiros e legatários envolvidos em um processo de indignidade. Na prática, tem-se que a recente alteração acaba com a utilidade da ação de indignidade no que se refere às condutas previstas incisos I e II do Art. 1.814 do Código Civil.
Marianna Keller Lima Coelho é advogada especialista em Direito, Tecnologia e Inovação pela Universidade FUMEC, especialista em Direito Civil em Juízo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e integrante do ARM Mentoria Jurídica, em Belo Horizonte/MG.
[1] STJ, Recurso Especial 2.023.098/DF, julgamento em 07.03.2023.
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