A penhora de salário para o pagamento de dívida civil é uma alternativa para a recuperação de créditos de forma eficiente. Embora a legislação brasileira proteja o salário como uma garantia mínima para o sustento do trabalhador, é possível explorar opções legais para assegurar o cumprimento das obrigações financeiras pelos devedores.
No Brasil, é comum encontrar devedores em situação de insolvência. O credor realiza várias pesquisas patrimoniais e pedidos de penhora de bens, mas muitas vezes não consegue receber a dívida. Além disso, o devedor muitas vezes age de má-fé, ocultando seus bens e atrasando a execução com vários recursos processuais.
Neste sentido, o credor não dispõe de outros meios eficazes para receber seu crédito, se não a penhora de salário.
Para o pagamento de dívidas de caráter alimentar, a penhora de salário já vinha sendo admitida como uma opção pelos tribunais brasileiros. Contudo, a jurisprudência é reticente quanto à utilização deste mecanismo frente ao adimplemento de dívidas civis em geral, ou seja, sem caráter alimentar necessariamente.
Isto porque para aplicação da penhora de salário na seara de dívidas civis é necessário contrariar disposição expressa do Código de Processo Civil, ao estabelecer a impenhorabilidade dos salários no art. 833, parágrafo 2º, exceto para pagamento de pensão alimentícia e em casos que ultrapassem 50 salários-mínimos mensais.
É claramente perceptível que permitir a penhora apenas de salários superiores a 50 salários-mínimos praticamente inviabiliza a aplicação da norma na prática. Isso é especialmente relevante considerando que a maioria dos devedores, que não têm outros ativos para quitar suas dívidas, também não recebem salários maiores do que 50 salários-mínimos.
No caso de um devedor que ganha mais de 50 salários-mínimos mensais, ele provavelmente terá outros meios para pagar a dívida, e usará a regra de menor onerosidade da execução para cumpri-la. Além disso, se ele ganhar mais de 50 salários-mínimos e não tiver outros bens, pode estar praticando fraude contra a execução ou contra credores. Vale lembrar que apenas 0,6% dos brasileiros ganham a renda estabelecida pelo art. 833, § 2º, do CPC (IBGE, 2015)[1].
Nessa linha, diversos tribunais têm interpretado e aplicado essa norma de maneira mais maleável, permitindo a penhora de salários em percentuais que não excedam 30% da renda líquida mensal do devedor, fundamentando-se em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), especialmente o EREsp 1.874.222. Contudo no julgamento do recurso mencionado, o tribunal superior apenas decidiu que a regra da impenhorabilidade de salário poderá ser flexibilizada, mas não definiu os critérios para tal flexibilização.
Neste ponto se encontra o maior impasse enfrentado pelo advogado atualmente, que é a falta de uniformização deste entendimento. Ainda que os julgados do STJ possam orientar o magistrado na avaliação dos critérios para permitir a penhora de salário, o juiz de 1º grau tem grande liberdade para decidir conforme achar melhor, usando a jurisprudência que mais se adequa ao seu entendimento.
Essa mesma falta de uniformização da jurisprudência pelo STJ tem desencadeado a uniformização dos entendimentos por meio de vias processuais alternativas, como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) para estabelecer diretrizes regionais sobre o assunto. Alguns exemplos de Tribunais Estaduais que já utilizaram da medida são os Tribunais de Minas Gerais[2] e do Mato Grosso do Sul[3].
Os critérios utilizados pelos tribunais são diversos, sendo o mais comum a avaliação se a penhora requerida comprometeria a subsistência do devedor e violaria o mínimo existencial. Para tanto, o percentual de 30% definido por alguns magistrados é o mesmo utilizado pela lei que autoriza o empréstimo consignado, que realiza seus débitos diretamente na folha de pagamento do cidadão.
Por fim, há debate sobre a quem cabe o ônus de provar se a penhora compromete a subsistência digna do devedor. Enquanto tribunais como o do Paraná[4] em alguns entendimentos atribuem esse ônus ao credor, outros, como Rio de Janeiro[5], impõem essa responsabilidade ao próprio devedor.
Partindo da premissa de que, nos casos de penhora de bens imóveis, o devedor é quem deve provar que um bem é impenhorável[6], por analogia, a prova da impenhorabilidade do salário também deve ser responsabilidade do devedor, não do credor ou do juiz.
Portanto, segundo a jurisprudência majoritária, mostra-se possível a relativização do § 2º do art. 833 do CPC/2015, de modo a se autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários-mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.
Ainda assim, não há dúvidas de que é necessária a uniformização dos entendimentos, de maneira que o Superior Tribunal de Justiça se prepara para julgar o Tema 1.230 sob o rito dos recursos repetitivos.
[1] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/rendimento-despesa-e-consumo/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html
[2] (TJMG – IRDR – Cv 1.0182.16.001439-1/001, Relator(a): Des.(a) Juliana Campos Horta , 2ª Seção Cível, julgamento em 30/06/2021, publicação da súmula em 12/11/2021)
[3] (TJMS. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 1403693-36.2019.8.12.0000, Campo Grande, Seção Especial – Cível, Relator (a): Des. Júlio Roberto Siqueira Cardoso, j: 04/03/2022, p: 10/03/2022)
[4](TJPR – 14ª Câmara Cível – 0104899-28.2023.8.16.0000 – Ivaiporã – Rel.: SUBSTITUTA CRISTIANE SANTOS LEITE – J. 25.03.2024)
[5] (TJ-RJ – AI: 00511548620228190000 202200270199, Relator: Des(a). PEDRO SARAIVA DE ANDRADE LEMOS, Data de Julgamento: 31/08/2022, DÉCIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 05/09/2022)
[6] (REsp 282.354/MG, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2000, DJ 19/03/2001)
Felipe Amorim Biesemeyer é graduando em Direito pelo Pontifícia Universidade Católica do Paraná e trainee na Poletto & Possamai Sociedade de Advogados, em Curitiba/PR.