Por David Roberto R. Soares da Silva e Artur Francisco da Silva
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou pedido de falência de uma empresa apresentado pela Fazenda Pública. Trata-se de julgado inédito e perigoso, pois pode ser tornar a vida empresarial mais difícil, sem contar os riscos que traz ao patrimônio pessoal dos sócios.
O instituto da falência sempre causou certo desconforto no meio social, pois assumir a impossibilidade de cumprir com as obrigações no âmbito comercial, pode soar como sinônimo de incompetência, ou até embuste, passando o falido a sofrer com os mais variados adjetivos depreciativos.
Longe desses predicados, falir, assim como o prosperar, são fatos absolutamente normais – ou ao menos deveriam ser – e que são plenamente possíveis àqueles que de algum modo empreendem.
Enquanto empreender é visto com louvor, falir é sua antítese.
Só esquecem de dizer que o processo falimentar, ao contrário do consciente coletivo, é um modo de garantir que aos credores seja repartida alguma parcela, ainda que pequena, da massa empresarial; é liquidar créditos e débitos, paralisando as atividades comerciais, com vistas à obtenção de capital que consiga saldar as dívidas de uma operação que já não se sustenta por si só.
Quando se comenta sobre a falência, o olhar precisa ser focado em duas normas principais: o Decreto-lei nº 7.661/1945 – revogado, e a Lei nº 11.101/2005 – atual. Apesar da revogação do Decreto-lei, as discussões sobre seu conteúdo, inclusive mudanças de posicionamento judicial, pautam muitas questões atuais, sobretudo em relação a dois assuntos muito presentes em direito processual civil: legitimidade e interesse de agir.
Legitimidade (processual) é a relação de pertinência com o direito que se exige; é aquele que busca, via ação judicial, que se cumpra um direito tido por violado. No caso da falência, geralmente, possui legitimidade o credor portador de título que ateste seu crédito, frente à inadimplência do devedor.
Já interesse de agir é a utilidade que o processo terá para aquele que requer uma providência judicial; é a demonstração de que, sem a intervenção judicial, a pretensão do autor não será atendida; e, além disso, que o processo seja adequado ao fim desejado – não há interesse de agir se a parte requer a falência do devedor, se pretende apenas cobrar seu crédito, posto que, enquanto na execução o interesse está no pagamento do crédito geralmente individualizado, o requerimento de falência engloba outros objetivos, tornando-a como uma “execução coletiva”, com vários credores e dinâmica processual quase que por completa distinta.
E aqui reside a celeuma que nos parece chegar a um fim próximo: possui a Fazenda Pública (o fisco) legitimidade e interesse de agir para requerer o pedido de falência de contribuinte inadimplente?
A resposta – negativa – foi dada diversas vezes pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando ainda vigia o Decreto-lei nº 7.661/1945 (antiga Lei de Falências). Historicamente, o STJ tem entendido que o fisco já possui meios diferenciados para a cobrança de seus créditos, regulados pela Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/1980), o que lhe garantem vantagem significativa frente aos demais credores comuns. Assim, a Fazenda Pública não teria nem legitimidade, nem interesse de agir.
Mas o que acontece quando a Fazenda Pública vê frustradas as suas tentativas de execução e não possui mais meios para a satisfação de seu crédito? Teria ela que aguardar algum outro credor requerer a falência do devedor para então habilitar seu crédito tributário?
Com esse entendimento e de maneira inédita, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 16 de julho de 2020 se posicionou favoravelmente ao pedido da Fazenda Federal e decretou a falência de uma empresa devedora de R$ 22 milhões em impostos federais (Apelação nº 1001975-61.2019.8.26.0491).
O ineditismo da decisão chamou a atenção de muitos empresários, que passaram a temer que o mero fato de deverem tributos poderia dar ensejo a pedidos de falência em série pelos fiscos federal, estadual e municipal, como forma de coação ao pagamento de impostos devidos.
O tema é, de fato, relevante, pois abre um precedente perigoso que pode colocar em risco o patrimônio pessoal dos empresários e empreendedores em geral, especialmente neste momento delicado da pandemia da COVID-19 que liquida diariamente centenas de negócios. O mal uso deste precedente pode, ainda, trazer à baila aspectos de ordem criminal, na esfera dos crimes falimentares.
Não obstante, o tema merece uma análise mais aprofundada da decisão do TJSP, pois a decretação da falência do contribuinte não decorreu de mero capricho fiscal, mas de uma atitude de sonegação contumaz por parte do contribuinte.
Vejamos.
Não foi somente o simples inadimplemento do devedor que deu suporte ao pedido fazendário. A postura comercial da empresa levantou sérias dúvidas sobre a lisura com a qual atuava no mercado, com destaque dívidas contraídas pela empresa usando bens pessoais dos sócios como garantia aos credores.
Um outro ponto levado em consideração na decisão foi sobre a infrutífera ação de execução fiscal contra a empresa. Mesmo com os privilégios da ação de execução fiscal, “não houve pagamento voluntário pelo devedor, nem foram localizados bens suficientes para satisfação da dívida, exaurindo-se os meios à disposição da Fazenda Pública.”
Assim, o TJSP entendeu que “em tais situações, não é razoável tolher da Fazenda Pública a possibilidade de postular a falência do devedor (…).
Embora pareçam louváveis os motivos para aceitar o pedido de falência do devedor em questão, a decisão não deixa de ser um precedente perigoso para os empresários brasileiros, dado que o seu uso inadequado e indiscriminado pela Fazenda Pública, seja ela federal, estadual ou municipal, pode se tornar instrumento de coação contra empresas devedoras, com sérias consequências na esfera patrimonial dos sócios. A decretação da falência de uma empresa, a depender das circunstâncias, pode ter reflexos no patrimônio pessoal do empreendedor.
A questão, por ser recente, ainda não chegou ao Superior Tribunal de Justiça, mas pela coerência dos argumentos, também é bem provável que seja aceita, e revista a antiga jurisprudência sobre a inviabilidade da Fazenda Pública requerer a falência do contribuinte.
Se se observar com vagar, o mote principal de tudo que foi dito até o momento é um só: patrimônio. As execuções fiscais contra pessoas jurídicas são facilmente direcionadas ao quadro social, ingressando no patrimônio particular dos sócios; e ainda mais gravosa, a falência, além de apuração dos desvios de uso da pessoa jurídica, que fatalmente terá como efeito também a devassa do patrimônio particular dos sócios, pode inclusive migrar para a responsabilidade criminal, na parte dos crimes falimentares.
Como consequência, a temática do planejamento patrimonial se torna ainda mais relevante para o meio empresarial; como se já não bastassem os riscos do negócio, o “custo Brasil”, a ultrapassada legislação trabalhista e tributária, o empresário brasileiro ainda precisa agora se preocupar com o risco de ver decretada a falência de sua empresa caso deixe de pagar tributos.
Antes mesmo de empreender, deve o empresário pensar em formas de proteção de seu patrimônio pessoal, para que eventuais tempestades não levem ao fundo do mar a empresa e, também, o patrimônio amealhado durante uma vida, prejudicando o sustento da família.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
Artur Francisco da Silva, advogado em São Paulo.
Gostei do assunto de sua publicação.
Sds.
Hermes